Ele
não nasceu numa manjedoura, também não chegou aos 33 anos e nem surpreendeu os
doutores do templo com a sua sabedoria. Há, porém, um par de coincidências
entre os dois garotos. Para começo de conversa, os dois vieram ao mundo numa
família pobre.
Nenhuma boa estrela anunciou a chegada de Carlos, mas a mãe o
recebeu, nove anos após o nascimento da sua filha, como se fosse trazido por um
anjo.
Foi um garoto comum entre todos os garotos comuns de Bauru, com uma mãe e
uma irmã, como todas as mães e irmãs que lutam cada dia para manter a casa em
pé com a maior decência.
Mesmo que
esteja num canto da sala, a máquina de costura é o coração da casa. Nela se
revezam mãe e filha para pagar as contas. Aquela máquina, elas pensam, é uma
bênção. Sem ela, não teriam segurado as pontas.
O menino cresceu ouvindo aquele
barulho intermitente como um acalanto. RRRRRRRR (silêncio) RRRRRRRR (silêncio).
Não há feriado. Só param o barulho para não atrapalhar o sono dos vizinhos.
Do
seu quarto, era só ouvir o barulho e o Carlinhos podia adivinhar o gesto de
cada uma das mulheres da casa. A irmã mais rápida, com intervalos menores. RRRR
(...) RRRR (...). A mãe, mais cuidadosa, fazendo olhinho de japonês, já não
enxergando. Ela sempre esquece de acender a luz. Trabalhando no escuro? Acende
a luz, mãe.
Nos últimos tempos, Carlos começou a ter raiva do barulho da
máquina, raiva do esforço das mulheres que apenas lhes deixava tempo para
comer, dormir e tomar banho.
Serviço não se rejeita. A conversa, o filme, o
cafuné e os planos de estudar junto, tudo que é bom ficava adiado. Ano próximo
a gente volta, fazemos supletivo.
Tudo nessa
casa ficava para depois. Eles tentaram, bem que tentaram. Foi bem difícil com
Carlinhos. Ele não era bom pros estudos. Todo mês mudava a professora.
E as que
duravam mais também não tinham paciência com aquele bando de moleques.
Carlinhos ia ficando para trás e a professora não reparava. A mãe também não
sabia ajudá-lo com a lição.
Ficou 3 anos na quarta série. Deu uma esticada boa
de repente, os pelos crescendo nas pernas.
Tinha vergonha de ficar entre as
crianças menores e foi ficando cada vez mais caladão. Mais triste. Cada vez com
mais raiva do barulho da máquina. Ia logo pro quarto ouvir música de fone de
ouvido.
Quando era
mais novinho, a máquina o fascinava. Ficava em pé observando a agulha subindo e
descendo rapidão, mastigando o pano. Cuidado com a mão, Carlinhos, que você
machuca. Ele ficava olhando hipnotizado.
Mas, no último ano, o olho dele
desviava da agulha, desviava da máquina, desviava dos olhos das mulheres da
casa. Havia sangue no olho do menino.
Não podia ouvir o barulho da máquina que
saía pra rua. Pra onde você vai, menino? Vou co’s amigos. Esses amigos... Ele
tem que fazer alguma coisa, mãe. Sem estudo, não vai conseguir emprego decente.
A mãe,
Elenice, se matriculou com ele. Toda noite iam juntos pra aula e depois faziam
juntos a lição de casa.
Carlinhos recuperou a mãe da máquina. Era tão bom poder
ser criança outra vez. Ele estava gostando, e aprendia.
Mas tinha as contas pra
pagar, aparecia serviço urgente. Carlinhos, vou ficar para terminar este
serviço, você pega a matéria e a gente estuda junto depois.
Faltou um dia e
depois outro. Se a senhora não for, eu também não vou.
A dona Elenice ficava
agoniada, entre a espada e a parede. Como que era? Se correr o bicho pega, se
ficar o bicho come.
O bicho
comeu. Carlinhos parou de ir pra escola. E saía direto pra rua. A dona Elenice
tentava segurar.
Ele até tem seu quarto. Mas co’barulho da máquina nem dá pra
assistir televisão. Lembra. Ela lembra daquele dia que olhou pro seu menino.
Aquele menino que nenhuma estrela anunciou, mas que ela recebeu como se fosse
trazido por um anjo. Olhou bem no fundo do olho do menino de sangue no olho,
pra além do sangue no olho, lá no fundo.
Ano próximo a gente matricula de novo.
Sim, mãe. Ano próximo a gente volta. E saiu pra rua.
Naquela
sexta-feira, Carlinhos apareceu com uma moto. De quem é essa moto? De um
colega, mãe, vamos dar uma volta na avenida e depois ele pega.
Dona Elenice
olha pra trás. Pensa como as coisas chegaram até esse ponto. Uma e outra vez
pergunta a si mesma como podia ter evitado. Naquela madrugada, chegaram 6
policiais batendo com força na sua porta e gritando.
É um erro, pensou. Mas
não, estavam atrás do Carlinhos. 5 ficaram trancados com ele e um ficou na sala
com as mulheres. Horas a fio trancafiados. Devia ser um erro.
Eles iam
perceber. Meu filho é um menino. Eles vão perceber. Ele só tem 15 anos. É
procedimento normal, senhora. No começo, ela até confiou.
Mas ouviu, entre os
gritos dos policiais, os gemidos do Carlos, mais menino que nunca no mesmo
quarto onde ele se deitava para ouvir música.
Na estante, ainda, os cadernos de
escola. A porta se abriu e viu seu filho carregado, inconsciente, para fora da
casa.
No quarto,
os CDs fora das caixinhas, os cadernos no chão, o fio desencapado.
Na sala, a
máquina de costura, agora silenciosa, sem acalantos para o menino que não
nasceu na manjedoura.
Silvia
Beatriz Adoue é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de
Araraquara.