Imagine
o leitor como deveria ser a vida de um professor primário no início do século
XX numa escola rural do Vale do Ribeira. Imaginou? Parece algo inimaginável,
não é mesmo? Pois essa experiência pode ser lida no livro “Alegrias, agruras e tristezas de um professor”, de Raimundo
Pastor, que lecionou na escola rural de Ribeirão Grande, bairro da antiga
Xiririca (hoje Eldorado) e em Iporanga, entre 1919 e 1925. Suas memórias, que
foram publicadas em 1970 pelo Centro do Professorado Paulista, levam o leitor a
uma fascinante volta ao passado.
Tomei
conhecimento desse livro – e da história do professor Raimundo Pastor – numa
crônica que o meu saudoso amigo J. Mendes (1918-1997) publicou em sua coluna na
antiga “A Tribuna do Ribeira”, em
meados da década de 1980. Desde então, vasculhei incontáveis sebos à procura
dessa relíquia, até que, há alguns anos, consegui localizá-la.
Capa do livro “Alegrias, agruras e tristezas de um professor” |
O
professor Raimundo Pastor, filho de uma família de imigrantes espanhóis, era
natural da região de Botucatu (SP). Dedicando toda a sua vida ao magistério,
Pastor se aposentou como delegado de ensino.
Nomeado
no dia 11 de junho de 1919 para a escola masculina rural de Ribeirão Grande, em
Xiririca, Raimundo Pastor pegou, em Santos, o trem com destino a Juquiá, na
estação que ficava na avenida Ana Costa. Chegou à pequena vila de Juquiá às
três horas da tarde, cansado, coberto de poeira. Na estrada, que não era
empedrada, o trem levantava uma “tempestade de pó”, que penetrava pelas
janelas.
Juquiá
era a estação final da Estrada de Ferro Santos-Juquiá, da Southern São Paulo
Railway. Contava com cerca de meia dúzia de casinhas de madeira levantadas à
margem do rio Juquiá. Tanto a estação como o hotel eram próximos ao rio. Pastor
nota que a lavagem da cozinha era jogada diretamente no rio. Na época de
enchente, tudo ia ao fundo, demorando cerca de uma semana para as águas
abaixarem.
A
cerca de uns quinhentos metros da estação ferroviária, ficava a Vila de Santo
Antônio do Juquiá, à margem direita do rio. “As
casas”, escreve Pastor, “na maioria
de aspecto indigente, esparramam-se, quase em desordem”. À chegada do
vapor, o povo da vila corria às margens do rio. “É um espetáculo deprimente. A miséria estampa-se na face e no corpo
daquela gente. Faces encovadas pela magreza ou inchadas pela opilação. Roupa em
frangalhos. Barrigas intumescidas. As crianças, então, apresentam toda a
miséria do lar. Descalças, com apenas uma camisinha curta, mostrando todo o
resto do corpo nu. Como os pais, apresentam os mesmos sinais de opilação e de
desnutrição. Perninhas descarnadas e ventre volumoso. Olhar vítreo, parado, sem
expressão de vida.”
Todos
eram atraídos pela possibilidade de ganhar algum vintém. Alguns ofereciam ao
comandante do vapor aves, palmitos ou verduras para a cozinha da embarcação. “A gente deixa aquele pessoal com o coração
oprimido. Não se pode imaginar que haja no Estado de São Paulo gente tão
maltratada da miséria, da doença e da incúria. São farrapos humanos, espectros
de gente, criaturas voltadas ao sofrimento.”
Pastor
ficou hospedado no único hotel da vila. Diga de passagem, sua impressão não foi
das melhores: “O hotel de Juquiá era o
que havia de pior. Casa de tábuas, assentada rente ao rio. Calor bárbaro, ainda
com as janelas abertas. Pernilongos aos turbilhões, transformando a estada do
passageiro em tortura indescritível. E, como se isso não bastasse, havia sempre
pândegos que gostavam de beber e cantar no botequim do andar térreo, até altas
horas da noite, pois não havia horário de abertura ou fechamento”.
No
dia seguinte, na hora do desjejum, os hóspedes sentavam-se todos juntos numa
mesa longa, “repleta de xícaras e com um
bule de café e uma cesta de fatias de pão, que vão passando uns aos outros, da
melhor maneira possível. Há quem, para tirar uma fatia, apalpa todas as outras,
à procura da mais tenra, pois as há de todas as idades. Tomando o café, paga-se
a pernoite. A cobrança é efetuada no botequim. Ninguém sai à rua com as malas,
sem deixar primeiro o dinheiro”.
Então,
era hora de partir para a Barra do Juquiá, de onde Pastor continuaria a sua via dolorosa até Xiririca.
SEGUINDO PARA
XIRIRICA
Deixando
a Vila de Juquiá, o professor Raimundo Pastor pegou uma lancha com destino a
Iguape; contudo, ele iria somente até a Barra do Juquiá (essa barra é a
confluência do rio Juquiá com o rio Ribeira de Iguape), onde seria o primeiro
pernoite da lancha. Pastor embarcou apenas com a roupa do corpo e seu
guarda-chuva, já que a bagagem ficara para seguir alguns dias depois, quando
haveria vapor direto para Xiririca.
Uma
dúvida inquietava o jovem professor: como conseguiria chegar ao seu destino,
Xiririca? Quando estava no hotelzinho da Barra do Juquiá, olhou pela janela e
percebeu que um canoeiro, negro, estava esgotando sua canoa. Desceu e perguntou
de onde ele era, ao que o canoeiro, que se chamava Zé Mateus, respondeu que era
“da Xiririca”. Pastor, então, perguntou se ele conhecia o bairro de Ribeirão
Grande, em cuja escolinha ele assumiria como professor primário.
O
canoeiro respondeu que não conhecia esse lugar. Pastor ficou um pouco
decepcionado. Mesmo assim, perguntou ao canoeiro quanto ele cobraria para
levá-lo até Xiririca. “Serve por doze mil
réis?”, foi a resposta de Zé Mateus. Havendo concordância, Pastor perguntou
se chegariam ainda naquele dia. O canoeiro fez um gesto de espanto e respondeu:
“Qu´esperança! Nem aminhã. Se o Senhor
Bom Jesus de Iguape não mandar o contrário, havemos de chegar depois de aminhã,
do meio dia pra tarde”.
Não tendo outra opção, Pastor decidiu embarcar
e seguiram viagem rio acima. A correnteza era forte, não havia remo que
impulsionasse a canoa. Para esses trechos do rio, o canoeiro se valia de uma
vara comprida (chamada de “varejão”). Escreve Pastor: “O canoeiro fica de pé na popa, apoia uma extremidade da vara no fundo
do rio e descarga todo o peso do corpo na outra extremidade, impulsionando a
embarcação água acima, até esgotar o comprimento do varejão, indo passo a passo
até a proa. Em seguida, corre para a popa, antes que a embarcação volte muito
atrás, e renova a operação até vencer a corredeira. É um trabalho violento, de
grande esforço, e em que todos os músculos do corpo se entesam e se enrijam,
saltando, como se quisessem romper a pele, que fica tesa como couro de
pandeiro. O busto toma atitudes bizarras e curiosas, como se estivesse
enfrentando em luta livre adversário temeroso”.
Pastor ficou impressionando com o
esforço despendido pelo canoeiro. “É um
dos trabalhos mais estafantes que já vi”, escreve. “O esforço desumano
dos barqueiros do Volga não seria tão violento quanto o dos canoeiros do
Ribeira, no trecho entre Barra do Batatal e Iporanga, cheio de corredeiras. No
entanto, ninguém decanta as proezas desses pobres diabos, arriscando a vida a
cada momento e se alimentando dum virado de feijão com farinha, acompanhado de
bananas nanicas ou dum naco de jabá cortado com o facão pendente da cinta. Aí
não há, em verdade, poesia. Há, isso sim, padecimento”.
Num
certo trecho do rio a canoa acostou e Pastor entendeu que passariam a noite
ali. Galgando o íngreme barranco, foram dar com uma casa construída sobre
paliçada. Embaixo dormiam porcos, que grunhiram com a chegada dos viajantes.
Era o pouso de nhô Nascimento. Ao entrarem na casa, o dono gritou para alguém
de dentro trazer o “belga”. Tratava-se de um candeeiro belga, com seu fogo
luminoso, que clareou tudo, inclusive a figura simpática de nhô Nascimento, “caboclo de barba espessa, negra, ainda moço
e de feições regulares e alegres”. Nascimento perguntou se Pastor era o
novo delegado de polícia “da Xiririca”, ao que o moço respondeu que era o
professor nomeado para a escola de Ribeirão Grande. “Conhece esse bairro?”, perguntou pastor. “Não conheço, ´nhor´ não”, respondeu Nascimento. Um frio percorreu
a espinha do professor. Parecia que o bairro para o qual fora nomeado
simplesmente não existia!
Homem
de natureza hospitaleira, nhô Nascimento ofereceu aos viajantes um bom jantar,
o que reanimou o professor que, sem ter almoçado, estava, como diz o povo, “varado
de fome”. Foram se deitar por volta das onze horas da noite. Zé Mateus estendeu
na varanda a esteira que forrava a canoa, dobrou o paletó em dois e fez dele um
travesseiro. Pastor ficou num canto da sala, onde colocaram alguns cobertores
no chão. Logo a casa ficou em profundo silêncio, só interrompido “a espaços pelo ronco de Zé Mateus e pelo
grunhido dos porcos, no porão”.
Washington Luiz chegando a Xiririca (“A Vida Moderna”, nº 415, de 29-9-1921). |
A
VISITA DE WASHINGTON LUIZ
Depois
de uma penosa viagem de canoa, o professor Raimundo Pastor finalmente chegou a
Xiririca. Ficou hospedado na pensão da Maria Turca. Naquela época (1919), o
chefe político da cidade era o coronel Avelino. Tempos atrás, o mandatário
local fora o coronel Joaquim Brasileiro Ferreira. Havia muita disputa pelo
poder. Pastor, a princípio, não teve boa impressão do lugar: “Cidade decadente. Casas velhas, muitas
sujas por fora. Não tinham calçadas e as que tinham era uma calçada particular,
de lajes de arenito, rústicas. Iluminação de lampiões de querosene. Grama
crescida à vontade nas ruas e no Largo da Matriz. E se não crescia mais, é
porque era tosada pelas vacas e burros soltos nas ruas”.
Pastor
escreve que era “perigoso” andar à noite pelas ruas da cidade. O professor
explica: “Não por malfeitores, mas pelos
tropeços, rodelas fresquinhas de estrume de vaca, número descomunal de sapos
que perambulavam, estacionando em comícios em baixo dos raros lampiões, à cata
de insetos e nuvem compacta de pernilongos que se estendia sobre a minúscula
cidade, adensando-se mais ao redor dos lampiões e formando uma espécie de gaze
viva suspensa no ar”.
O
calor era sufocante. Os habitantes ficavam à noite na frente de suas casas para
“pegarem um ar”. Pastor percebeu um aspecto de pobreza na cidade. Mas gostou da
gente do lugar: “O povo, como
posteriormente observei, é de índole boa, pacífico por temperamento”.
Pastor travou amizade com o
secretário da Prefeitura, Jango Manuel. Devia ter entre 45 a 50 anos, era alto,
bem apessoado e de aspecto respeitável. Era um homem culto, que colaborava com
a “Tribuna de Iguape”, então o
semanário de maior prestígio no Vale do Ribeira. O secretário possuía a melhor
biblioteca da cidade. Ali Pastor encontrou os melhores autores nacionais, entre
os quais Machado de Assis ocupava lugar de honra. Entre os autores
estrangeiros, seus preferidos eram Victor Hugo, Balzac e Zola.
Em
setembro de 1921, o então presidente do Estado de São Paulo (cargo hoje
equivalente a governador), Washington Luiz Pereira de Souza, visitou Xiririca.
Foi um alvoroço na cidade. Os alunos das Escolas Reunidas, e a população em
geral, foram até o cais para recepcionar o vapor Vicente de Carvalho. As crianças gritavam a plenos pulmões: “Viva o presidente do Estado! Viva o maior
reformador do ensino paulista! Viva o iniciador das estradas de rodagem! Viva o
maior homem do Estado! Viva o maior homem do Brasil! Viva o maior homem da
América!”. Hino Nacional. Foguetório. Discursos. Houve sessão solene na
Câmara Municipal.
Subindo
o Ribeira a bordo do vapor, a excursão presidencial vislumbrou um pavilhão
escolar colocado num casebre, no sítio do Lorena, a uns duzentos metros do rio.
O presidente mandou parar o vapor e foram todos até lá. Era uma escolinha
primária dirigida pela professora era Benedita de Azevedo. O presidente parou à
porta e contemplou a professora de costas, escrevendo na lousa. Até que um
aluno chamou: “Fessora, tem gente na
porta”. A professora ficou espantada ao reconhecer o presidente do Estado. Washington
Luiz percebeu o embaraço da professora e foi muito cordial e simpático com
todos.
O
presidente vistoriou a escola, os cadernos, fez perguntas às crianças. Após
vinte minutos de perguntas, o presidente deu-se por satisfeito e disse: “Sim, senhor, eis uma escola que me
satisfaz!”. E virando-se para a professora: “A senhora está de parabéns. Gostei de sua escola. Minhas felicitações
seu esforço. E oxalá seu exemplo seja seguido por todas as professoras do
Estado. E para premiar caso deseje sair daqui, pode dizer para onde deseja ir”.
A
professora pediu uma escola no município de Bernardino de Campos, terra de seus
familiares. Ao que o presidente respondeu na hora: “Atendida!”. E virando-se para o seu ajudante de ordens: “Telegrafe ao D
Alarico, dando cumprimento a esse pedido”.
E, para atender ao pedido da
professora Benedita, Washington Luiz criou uma escola em Bernardino de Campos.
Iporanga, início do século XX |
SEGUINDO PARA IPORANGA
Em
fevereiro de 1924, o professor Raimundo Pastor foi nomeado diretor das Escolas
Reunidas de Iporanga. A princípio, o professor ficou intrigado, pois bem sabia
que essas nomeações eram feitas mediante apadrinhamento político, e ele só
conhecia de vista o chefe político da cidade, coronel Neves, que era o
presidente do Partido Republicano Paulista local. O que Pastor ficou sabendo
depois é que o mandachuva de Iporanga tinha mexido os pauzinhos junto ao
Governo do Estado para conseguir a sua nomeação, evitando-se assim que fosse
nomeado o professor Durval de Castro, que, apesar de ser o mais indicado, por
estar há mais tempo na cidade, foi preterido no cargo pelo seguinte motivo:
vivia namorando a filha do chefe da oposição e, uma vez casado, com certeza
seria mais um forte opositor.
Mas,
satisfeito com a nomeação, Pastor partiu para Iporanga. Naquela época, o acesso
de Xiririca a Iporanga era feito através de três viagens mensais de canoas,
subvencionadas pelo Estado. A canoa que o professor pegou saiu de Xiririca às
cinco horas da manhã e navegou pelo rio durante dois longos dias, num percurso
muito difícil devido às corredeiras. Com ele foi também um caixeiro-viajante
português, ainda jovem, que viera à zona do Ribeira para vender os seus
produtos. O primeiro pouso da viagem foi num bairro chamado Cafezal, bem ao
anoitecer. Ali morava Nhô Sebastião, que acolheu os viajantes com sua
costumeira cortesia. O velho ofereceu um bom jantar: feijão, arroz da terra,
carne de porco conservada fria, couve picada e farinha torrada, além de uma
pinguinha de sua fabricação caseira.
Após
a refeição, Nhô Sebastião perguntou, orgulhoso, ao português, que tinha acabado
de provar um gole da bebida: “Não gostou
da pinguinha, moço? Pois é a melhor da redondeza”. Ao que o português
respondeu: “Pinga boa é a que eu vendo. O
senhor deve comprar de mim e não servir cachaça vagabunda como essa”. O
anfitrião não gostou nem um pouco da desfeita do moço e disse: “Olhe, seu moço, essa pinguinha que aí está
é feita de cana, sou eu quem a faz e sei o que faço. A do senhor, não sei do
que será feita. É possível que seja feita de cana do brejo...”
O
português percebeu que tinha dado uma bela mancada. Depois foram jogar uma
partida de cartas. Formaram-se duas mesas. Nhô Sebastião ficou na mesa junto
com o português. Não demorou muito e o hospedeiro reclamou: “Dessa maneira, moço, qualquer um ganha. O
senhor está roubando à vista de todos. Não pense que a gente não enxerga nada
porque é da roça...”. Ao que o rapaz retrucou: “Engano, senhor Sebastião. Não estou roubando. É que o senhor está
mesmo de azar, de urucubaca. Está perdendo mesmo...”. Foi a gota d´água
para o velho responder: “Roube, se
quiser, moço, mas não blasfeme numa casa em que vive a paz do Senhor... Ouviu
bem? Além de roubar, ainda profere palavras indignas do Senhor... Nesta casa
vive-se com a lei de Deus”.
Novamente,
o português ficou sem jeito e achou melhor ficar num canto, cabisbaixo. O
professor Pastor também achou adequado ficar à parte, esperando a hora de
dormir. A noite passou rapidamente e, quando foi às cinco horas da manhã, os
canoeiros botaram o nariz para dentro da casa e gritaram: “Tá na hora, pessoal! Vamos embora...”. Nhô Sebastião fez questão
que todos tomassem uma xícara de café, inclusive o jovem português.
Na
hora de acertar as contas, o lusitano perguntou quanto devia, ao que o velho
respondeu que não devia nada. O português insistiu, mas Nhô Sebastião não
aceitou. Até que o lusitano teve a ideia de oferecer umas lembrancinhas às
filhas do hospedeiro, e perguntou: “O
senhor tem raparigas?”. O velho não se conteve e bradou: ‘Então o senhor tem a coragem de tratar de raparigas as minhas
filhas, e isso na minha própria casa? O senhor está julgando o quê, diga, seu
atrevido! O senhor está numa casa honesta, que se rege pelas leis do Senhor...”
Mesmo
quando foi explicado que, em Portugal, a expressão “rapariga” referia-se apenas
a moça solteira, e não à mulher à toa, nem assim o velho aceitou a explicação:
“Ponha-se daqui para fora e já. Minhas filhas não são o que o senhor pensa para
receberem presentes de homem. Minhas
filhas só recebem presentes meus. Minhas filhas não são dessas que o senhor
pensa, ouviu?”
Embaraçados
pelo mal entendido, canoeiros e viajantes acharam melhor embarcar na canoa e
seguir viagem rumo ao destino: a Vila de Iporanga.
VISITANDO AS
CAVERNAS
Iporanga
em 1924 era, no dizer do professor Raimundo Pastor, “uma cidadezinha plantada na encosta do rio Ribeira de Iguape...
construída no mesmo estilo de Xiririca... acidentada... As calçadas formavam
degraus, observando diferença de nível, de distância em distância... Havia
calçada com mais de metro e meio acima do nível da rua... Isso dificultava seu
uso”.
Era
uma vila simples, com duas centenas de casas igualmente simples. Pastor ficou
hospedado na pensão do senhor Carlos Nunes, que devia beirar os setenta anos. O
velho entendia de medicina homeopática, vestia-se decentemente e nunca saía de
casa sem a sua inseparável bengala. Na mesma pensão morava o delegado.
Um
fato curioso aconteceu logo no dia seguinte à chegada de Pastor. Pela manhã, o
professor foi procurado pelo oficial de justiça, que explicou que ele fora
designado pelo delegado para fazer exame cadavérico no corpo de um canoeiro que
morrera afogado há vários dias. Pastor perguntou por que ele deveria fazer o
exame, ao que o oficial de justiça respondeu que era para constatar que o
canoeiro estava morto; na cidade não havia médico e o professor, sendo uma pessoa
formada, saberia se desempenhar muito bem da tarefa.
Pastor
perguntou por que deveria fazer o exame se o canoeiro estava de fato morto há
vários dias. Para que iria verificar algo que todos já sabiam? “A lei manda!”, respondeu o oficial de
justiça. Sem outra alternativa, Pastor foi até a canoa na qual jazia o corpo do
defunto, examinou seu estado já em decomposição, o suficiente para lhe revoltar
o estômago. Cumprida a sua obrigação, o professor perguntou, novamente, ao
oficial por que ele tinha sido o indicado para tal tarefa. “Ninguém quis aceitar.. – disse o oficial. – Além do mais, trata-se de
assunto importante, muito sério mesmo, para ser resolvido por pessoa não
formada... Quem não tem cão caça com gato...”
Continuando
as suas memórias, o professor Raimundo Pastor descreve a figura de Nhô
Bernardo, cafuso, “que nas suas andanças
pela mata virgem descobriu, segundo constava, as grutas calcárias de Iporanga”.
O velho esperava ser nomeado como zelador do local, pois, além de descobridor,
era o que mais conhecia as grutas por dentro. Mas Nhô Bernardo não foi
indicado. O fiscal nomeado nem se deu ao trabalho de visitar o lugar.
Limitava-se a assinar o recibo no fim do mês e a receber o pequeno salário que
lhe pagavam. Nhô Bernardo comentou com Pastor: “É para o senhor ver! Um queima os dedos para tirar o assado do fogo e
outro é que vai comer, sem ter feito força. Mas não faz mal. Deus Nosso Senhor
é grande e sabe o que faz.”
Em
fevereiro de 1925, o professor Pastor, acompanhado do também professor João de
Souza Ferraz, guiados por Nhô Bernardo, foram conhecer as famosas grutas
calcárias de Iporanga. Souza Ferraz, mais tarde, se destacaria como escritor,
escrevendo, entre outros, os livros “Caraguatás”
(contos) e “Aguapés flutuam na Ribeira”
(romance), com temas baseados no povo e na região do Vale do Ribeira.
Exploraram as grutas do Monjolinho e do Arataca e ficaram fascinados com a
beleza natural dessas formações geológicas.
Finalmente,
pelos dias de maio de 1925, o professor Raimundo Pastor deixava definitivamente
Iporanga e o Vale do Ribeira. Fora nomeado para diretor adjunto do Grupo
Escolar de Ilhabela, que então ainda se chamava Vila Bela. Suas memórias,
porém, ficarão para sempre como um fiel registro do povo, do modo de vida e das
peculiaridades da região durante as primeiras décadas do século XX.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras sócio do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/