Por determinação da rainha Maria I de Portugal
– mais tarde chamada de “A Louca” –, a Câmara da Vila de Cananeia passou a
registrar, num livro de memórias, todos os fatos importantes acontecidos na
localidade, desde as suas origens até o ano de 1787, e desta data até 1828,
quando o livro deixou de ser continuado. Desse registro ficou encarregado o
“terceiro vereador” Luiz Antônio de Freitas.
As profecias de Cananeia |
Nessas “Memórias
Memoráveis”, encontramos dados interessantes sobre a cidade que o ilustre
historiador Antônio Paulino de Almeida (1882-1969) afirmou ser “a primeira povoação civilizada ereta ao sul
do Brasil”. Depois de anos de árdua pesquisa, Paulino de Almeida conseguiu
reunir as páginas perdidas dessas memórias, que foram publicadas, postumamente,
no terceiro volume de sua “Memória
Histórica Sobre Cananeia”, editada pela Universidade de São Paulo, em 1981.
A NAU “CANANEIA”
Entre os fatos mais pitorescas narrados nas “Memórias Memoráveis”, destaca-se a
profecia de um índio, “já velho, natural
do sertão”, mas catequizado, que profetizou, em 1709, a construção de uma
grande nau – numa época em que a pacata vila ainda nem sonhava em conhecer o
movimentado período das construções navais que, décadas mais tarde,
movimentaria a economia local.
De acordo com antiga tradição resgatada nas “Memórias”, o velho índio, como que
agourando, sempre repetia os versos:
“Uma
nau se fará
E
nela sinos se tangerão
Missa
cantada haverá
Que
muitas gentes ouvirão”.
E, assim recitando, indicava o local onde seria
construído o futuro estaleiro, enfatizando, ainda, que os mestres construtores
viriam do Rio de Janeiro. Apontando para a Serra do Itapitangui (“morro granítico manchado de vermelho”, na
tradução do Dr. João Mendes de Almeida), o índio dizia:
“Ó
tu, cabeça de pedra, barriga de ouro, tempo virá
que por teu ouro destripado serás”.
Curiosamente, a profecia do velho índio se
concretizaria dois anos depois, quando, em 1711, chegaram, vindos do Rio de
Janeiro, os mestres construtores. O estaleiro – como o leitor já deve imaginar
– foi instalado no mesmo local profetizado, o qual passou a ser chamado de “Estaleiro da Nau”, que ficava
localizado na parte ocidental da ilha de Cananeia, próximo à Baía de Trapandé,
defronte da Serra do Itapitangui e Mar de Cubatão.
Durante um ano inteiro, carpinteiros e outros
mestres trabalharam para a construção da nau, recebendo seus vencimentos em
dinheiro ou fazenda. Um fatídico incidente, porém, veio entristecer a todos os
que se dedicavam à confecção da embarcação: o contramestre e o piloto, “que passavam de passagem da terra firme
para a sua banda, na condução de seus mastaréus”, morreram afogados.
E chegou o grande dia. A nau estava terminada.
Os sinos da Igreja de São João Batista repicaram alegremente. Missa solene foi
celebrada no templo. A nau, com grande contentamento, foi lançada ao mar e
navegou tranquilamente até Lisboa, onde, naquela corte, devido à sua origem,
recebeu o nome de “Nau Cananeia”.
O OURO DE CANANEIA
As “Memórias
Memoráveis” também narram outra profecia, que teria sido vaticinada no ano
de 1730, protagonizada por um “peregrino
passageiro”. Dizia o povo que era
um velho “português”, apesar de desconhecerem a sua verdadeira nacionalidade.
Era um “homem de boa idade e de vida
exemplar no quanto mostrava”. Seu nome não ficou registrado nos anais da
vila; “seus ditos eram alegóricos e
cheios de enigmas”.
O velho, muitas vezes, olhando para a Serra do
Itapitangui, dizia o seguinte: “Fronteiro
ao Colégio está São Bento e debaixo das escadarias do Colégio estão setecentos
mil quintais de ouro, que no vindouro, por este pouco repartidos serão”.
E dizia mais ainda: “Oh! monte, e grande monte! de teu centro sendo minado, sairá de ouro
outro monte: ao teu ouro grande fome adiantará, e nele por 7 anos estendida
pouco de vida haverá. Teu descobridor, um João, pobre será. Ai dele que por
prêmio morte terá”.
Mas logo o velho desapareceu da vila, indo
surgir na Ilha de Santa Catarina (Florianópolis), onde foi considerado um
“vadio”, sendo, dessa maneira, obrigado a trabalhar numa fortaleza. Passado
algum tempo, numa certa manhã, o velho foi encontrado sem vida, “com os joelhos em terra e as mãos
levantadas para o céu”.
As minas, citadas na “profecia”, foram descobertas,
no ano de 1667, por Luiz Lopes de Carvalho, quando administrador das minas de
Itanhaém e São Vicente. Encontradas ao acaso, localizavam-se na Serra do
Itapitangui, majestosa montanha que se eleva no continente da cidade de Cananeia.
Mais tarde, quando tentaram novamente encontrá-las, não lograram êxito. As
minas só foram “redescobertas”, em 1725, pelo sargento-mor Antônio de Freitas
Sobral, pai do “terceiro vereador” Luiz Antônio de Freitas, autor das “Memórias Memoráveis”.
Comentando a “profecia” do velho “profeta”,
o “terceiro vereador” escreveu estas linhas, onde se percebe um tom de ironia: “Nas derrotas deste dito monte, sendo eu
rapaz, acompanhei a meu pai, o sargento-mor Antônio de Freitas Sobral, que por
duas vezes seguiu o dito prognóstico de ouro, procurando sua fortuna; porém,
entrando assim rico dos tais prognósticos, saiu pobre do prognóstico”.
As “Memórias
Memoráveis” também registram que foi encontrado muito ouro nas fraldas da
Serra do Cadeado, próximo às antigas minas ali descobertas, e em dois
ribeirões, que hoje são chamados de Cadeado e Cintra. O primeiro assim foi
denominado porque em seu leito foram encontradas duas folhetas de ouro
semelhantes a um cadeado; e o segundo, em virtude de seu descobridor chamar-se
Francisco Cintra.
As minas de Cananeia, de acordo com Antônio
Paulino de Almeida, foram regularmente exploradas até o início de 1800, após o
que a mineração do ouro na vila, devido à escassez do metal, foi finalmente
encerrada.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/