As Sete Barras de Ouro


“Nos tempos em que se minerava ouro no Arraial (no rio Iporanga), um espanhol que lá esteve, bateando nas guapiaras, conseguiu, após algum trabalho, juntar muitas pepitas de ouro, perfazendo o total de vários quilos do cobiçado metal, que fundiu em sete barras de grande peso cada uma" – “Riquezas do Ribeira de Iguape” (1922), Diogo Martins Ribeiro Júnior.

As Sete Barras de Ouro
As Sete Barras de Ouro

Foi no tempo do ouro.

O espanhol encontrara muitos granetes no Iporanga. Enchera vários surrões e decidira partir. Seu destino era o pouso de Goyntãhogoa.

– Então pai branco quer tornar à Espanha com todo esse ouro? – perguntou um índio curioso, que labutava nas lavras.

– É o que farei, e sem mais vagar – os olhos do espanhol faiscavam naquele pôr de sol tristonho, quando a morraria da Ribeira era banhada pelos últimos raios e a noite já dava sinais de que não tardaria a envolver todo o vale.

As Sete Barras de Ouro
As Sete Barras de Ouro

Em Goyntãhogoa, o espanhol, entendido nas artes de fundição, num só dia conseguiu transformar todo o seu ouro em sete barras de muitas oitavas, que acondicionou em surrões de couro e guardou-os nas bruacas.

– Em Espanha viverei como um rei!... – a indiada não discernia se havia mais brilho nas barras de ouro ou nos olhos cobiçosos do espanhol.

Mas tinha um imprevisto. Como conseguiria burlar o fisco do posto de Registro, onde a El-Rey deveria ser pago o “quinto dos infernos”? Os homens da fiscalização eram severos e nenhum minerador jamais cruzara aquele trecho da Ribeira sem que fosse barrado e obrigado a pagar o quinto do Rei.

– Não darei uma só oitava do meu ouro a El-Rey de Portugal ou a quem quer que seja! – pensou o espanhol. – Passei mais de ano atolado em rios e minas à cata desse ouro e El-Rey quer que eu lhe pague um quinto de meu trabalho, assim, sem mais nem menos?... Ora, faz-me rir...

E soltou uma gargalhada cavernosa, que fez temer aos índios. O negror daquela noite foi encontrá-lo enterrando suas barras de ouro, em Gointãhogoa, num lugar que só ele sabia e que procurou gravar na memória.

As Sete Barras de Ouro
Antigo Vapor no Porto de Sete Barras

– Vou mais adiante e, no Juquiá, a indiada me informará do caminho a seguir para Santos sem ter que passar pelo posto de Registro.

Foi o que fez. Os índios do Juquiá não lhe sonegaram informação:

– Pai branco sai pelo Y-iquiá e Caynnoiré (São Lourenço) e, pelas cabeceiras do Itariri, atingirá com facilidade o grande rio de água salgada.

Outro índio conta-lhe que muito ouro brota da terra no Guyrõmbyi (Quilombo), no sítio Tarenconcé (Travessão). Os olhos do espanhol readquiriram o brilho costumeiro. Brilho de cobiça.

Sem tardança, para lá se dirigiu, vencendo rios e serrania. E muito ouro encontrou no Travessão.

Boatos lhe fizeram saber das minas de Pedro Vaz, no Assungui. Encheu-se de desejo de associar-se ao grande minerador. Entabulou conversa, fez propostas. Nada conseguiu, no entanto. Resolveu tornar a Goyntãhogoa, pegar suas barras e volver à Espanha. Mas quem disse que conseguiu encontrá-las naquele sertão de Nosso Senhor? Cava daqui, esburaca dali, perto desta figueira, adiante daquela casqueira. Nada. A terra ficara com elas para sempre...

– Maldita sina!... Agora só me restou o ouro do Travessão... E é com ele que pegarei o primeiro barco em Santos com destino à Espanha...

Deixou, assim, Goyntãhogoa. Contam as crônicas que, a partir daí, o lugar passou a ser chamado de Sete Barras.

*

– Não pagarei uma oitava a El-Rey! – disse, resoluto, o espanhol.

E tocou-se pelo Juquiá afora, São Lourenço e Itariri. Na barra do Piguari (Tigre) encontrou-se com frei Maurício, acompanhado da indiada cayuyá, que iniciava sua viagem de volta a Mboy (Embu).

– Muito ouro por estas bandas, senhor frade? – perguntou, disfarçando o interesse, o cobiçoso espanhol.

– Enchi dez surrões, que levarei ao convento de Mboy – o frei não demonstrou preocupação em falar de seu ouro ao desconhecido. – Vosmecê que se abanque e se garre a batear por esses riachos, que ouro sobeja aos borbotões... Tudo vem minando da Serra dos Itatins, a Serra do Ouro...

Um índio acompanhou o espanhol até as cabeceiras do Itaçaenduva (Bananal), afluente do São Lourenço, que, como o Piguari, nasce nos Itatins. Subiram o Piguari, vencem a serrania e, aventurando-se num espigão dos Itatins, atingem o Itaçaenduva. Seguindo adiante, entrando pelo acanhado córrego Itajubá (“rio da pedra amarela”), foram dar numa grande lagoa, de praias deslumbrantes, que deixou a todos fascinados.

– Veja quanto brilho, pai branco, é tudo ouro! – exclamou a indiada, estupefata.

A lagoa ficava no alto de uma serra isolada, de escarpas abruptas, e exibia suas margens cobertas de ouro. E era só o trabalho de catá-lo com as próprias mãos, sem ferramentaria alguma.

– Abençoada seja a Senhora de Guadelupe que me guiou até a Lagoa Dourada!... – disse o espanhol, caindo de joelhos. – Em voltando à Espanha construirei uma capela só para a sua devoção, santa minha!...

O espanhol fartou-se de tanto ajuntar ouro.

Surrões de couro de anta, e mesmo canudos de taquaruçu, foram abarrotados de tal maneira que ele nem imaginava como conseguiria carregar de volta tanto peso assim. Mais do que nunca, estava resoluto a seguir para Santos. A sua querida Espanha não tardaria a recebê-lo como a um filho de algo.

Acompanhado de toda a indiada, que não entendia o porquê de um homem branco dar tanta importância a umas pedras que eles nem para enfeite queriam, o espanhol deixa as vertentes do Itaçaenduva e parte em demanda das vertentes do Ndaipiahy (Despraiado). Desce por este rio, atravessa o igarapé Quaraharu (Carvalho), para atingir o rio Una do Prelado, a praia de Una e, dali, após transpor o Guaraú, conseguir chegar finalmente à vila de Santos.

Mas a viagem não seria fácil.

No Itinguçu, construiu uma canoa de bom tamanho para levar todo o ouro e seus administrados. E inicia a viagem em direitura de Santos.

Na segunda noite da dura jornada, pernoitou no Una, arranchando-se do melhor jeito que pode. A roda da fortuna, no entanto, não lhe quis girar favoravelmente. Uma tempestade torrencial desabou durante a madrugada e, soltando a canoa das amarras, fê-la submergir ao largo do rio, levando consigo todo o carregamento de ouro.

Na manhã seguinte, percebendo o ocorrido, trataram de resgatar a canoa do fundo do rio, o que conseguiram depois de repetidos mergulhos. Mas nada do ouro. Ficara para sempre escondido no lodo do rio.

O espanhol, não suportando o inesperado desastre, enlouquece. Os índios, assustados, apenas observam o seu ensandecido senhor. Deixando tudo ao deus-dará, o mineiro de Espanha some em direção às cabeceiras do Itaçaenduva, e dele ninguém mais teve notícia.

Passa-se o tempo e, certo dia, o próprio frei Maurício, em suas catas de ouro por aquelas bandas, encontra um esqueleto encostado a uma grande pedra, à margem da Lagoa Dourada. As mãos sem carnes seguram pepitas de ouro de tamanho desusado. Frei Maurício, piedosamente, dá-lhe um enterro cristão e reza por sua alma pecadora.

Os antigos asseguram que, desde aqueles tempos, quem se aventurar pelas cabeceiras do Itaçaenduva, escutará estranhos ruídos, vozes e lamentações, e verá vagar a esmo figuras espectrais, entre elas, o malogrado espanhol, à procura de suas cobiçadas pepitas.

AVISO AO LEITOR

 “As Sete Barras de Ouro” é um dos contos de ficção histórica que compõe o livro (no prelo) “Os Mistérios do Vale - Crônicas Ribeirenses”, de minha autoria, a ser publicado brevemente.

ROBERTO FORTES

ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br


(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

(Fotos: Cortesia Família Yanaguizawa, de Iguape)

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