Antiga formação geológica, hoje de
propriedade particular, a Pedra da Paixão, situada num dos contrafortes do morro
da Espia, em Iguape, guarda muitas histórias. Foi ali o cenário de um dramático
caso de amor. Talvez Shakespeare tivesse mais talento para narrar esse drama.
Na falta do bardo inglês, cabe a este pouco inspirado cronista narrá-lo aos
seus poucos, mais fiéis, leitores.
O DRAMA DA PEDRA DA PAIXÃO |
Consegui encontrar duas versões dessa
história: uma tendo como protagonista João Ribeiro de Aguiar, conforme relata o
semanário “Tribuna de Iguape” numa
edição de 1923; e outra, contada pelo escritor Paulo de Avelar, que nomeia o
jovem como João Teodoro. Seriam a mesma pessoa? É o que veremos no decorrer
deste levantamento histórico.
PRIMERA VERSÃO
Vejamos, primeiramente, o que nos conta
o jornal “Tribuna de Iguape”.
Na noite de 1º de fevereiro de 1923, o
jovem João Ribeiro de Aguiar, “de 19
annos de idade, auxiliar do commercio desta praça, por motivo de não ser bem
correspondido em seus amores”, atirou-se ao Mar Pequeno, ali na Pedra da
Paixão. Como acontece com boa parte dos suicidas, deixou uma carta. Machado de
Assis, em certo conto, escreve que os suicidas fazem questão de deixar uma
carta, onde explicam as razões de subtraírem as próprias vidas.
Vamos à carta, que foi publicada na “Tribuna de Iguape”, número 412, de 11
de fevereiro de 1923, então dirigida pelo legendário Major Mingute, e que aqui
transcrevo em sua “ortographia”
original:
“A quem ler.
Perdoem-me si
foi um erro isto que cometti perante este mundo de ingratidão, onde só
encontra-se obstáculos, mas por menos será impossível. Hoje eu sei quantos
erros existem aqui nesta lama, mas como o mundo é somente lixo e que não passa
disso portanto eu desisto delle para não servir mais de forças para ella. É
muito bom mas para os que nascem com a felecidade.
“Eu julgava que
seria fácil viver, mas hoje compreendo que não é. Si eu faço isso, é porque me
acho sem forças necessárias para viver. Limito-me a fazer só estas linhas
porque acho ser o necessário.
“No mais, adeus
e me perdoem o que fiz. Heide dar contas a Deus. Não culpem a ninguém, eu sou o
único culpado.
J. Aguiar.”
Essa carta foi encontrada nos bolsos de
João. O cadáver do rapaz foi achado no dia seguinte, 2 de fevereiro de 1923, ”sendo dado à sepultura logo depois de ter
sido submettido às formalidades legaes”, ou seja, somente no dia 4 de
fevereiro. O delegado de Polícia abriu o competente inquérito “para a boa ellucidação do caso”.
SEGUNDA VERSÃO
O escritor iguapense Paulo de Avelar
(1916-1995), pseudônimo de José Boaventura Barbosa, em seu livro de memórias “Iguape de Outrora” (Edição do Autor,
1988, págs. 99- 102), conta uma versão mais detalhada desse drama.
João Teodoro amava Tereza F. (por razões
óbvias, omitirei o sobrenome). Até aí nada demais. O que existe de mais natural
do que dois jovens se amarem? Bem, era um amor impossível na Iguape da época.
Ele era pobre; ela, digamos assim, remediada, “estava mais para rica do que para pobre”. Os pais exerciam severa vigilância
sobre filhos e filhas; os casamentos eram arranjados desde o nascimento.
Portanto, duas forças eram contrárias a esse romance: a ignorância dos pais e a
diferença social.
A despeito de tudo isso, o romance entre
João Teodoro e Tereza F. “ia sendo levado
aos solavancos”. Até que os pais colocaram Tereza contra a parede, que não
teve outra alternativa senão terminar o namoro com João. A jovem comprou, numa
papelaria, tinta roxa (usava-se caneta tinteiro; e o roxo era a cor do luto).
Escreveu lacrimejante carta ao amado, dando um ponto final ao romance que ambos
até então consideravam imorredouro.
Ao receber a missiva da amada, João
leu-a diversas vezes. Para ele, era difícil acreditar no que acabara de ler.
Por fim, convenceu-se da verdade e chorou todas as lágrimas que pôde chorar.
João perdeu o gosto pela vida; esqueceu-se até mesmo do trabalho. Note-se que o
jovem era o primeiro caixeiro na “Casa
Lima”, que pertencia ao senhor José Ildefonso de Lima, o simpático nhô Juca Lifonso.
João passou a noite e a madrugada
sentado no gramado que havia nos fundos de sua casa, no Funil de Cima.
Amanheceu o dia, finalmente. João não
voltara para a sua casa. A mãe e a irmã de João, Maria Teodora, saíram pela
cidade à procura do filho e irmão. Afinal, ele sempre fora um rapaz correto,
bom filho, bom irmão, cumpridor de seus deveres e jamais passara uma noite fora
de casa.
Toda a cidade se agitou. Por onde
andaria João Teodoro? Teria viajado? Ora, sair de Iguape naquele tempo sem que
ninguém notasse era proeza impossível. O único meio de transporte era pelo
Porto Grande, em vapores. Estradas não existiam. Assim, se ele de fato tivesse
saído da cidade, alguém com certeza o teria visto.
Todos começaram a temer pelo pior. Todas
as casas e todos os estabelecimentos foram averiguados. O dono de um bar disse
que, na noite antecedente ao desaparecimento de João, o jovem comprara no seu
estabelecimento duas garrafas de pinga (seriam das marcas “Cristiano” ou “Morrão
Ribeira”?). O dono da farmácia confirmou que, naquela mesma noite, João
comprara dois vidros de arsênico, não venenoso, bem entendido, e sim homeopático.
O tempo passa e nada de João aparecer.
Então, os seus familiares foram pedir o auxílio de “seu” Juca Lopes, que era
espírita. Durante a sessão, Juca Lopes disse que os espíritos lhe garantiram
que João Teodoro estava embaixo da Pedra da Paixão. Toda a cidade se emocionou.
Então João Teodoro, um rapaz pobre, mas decente, se matara por amor? E tudo por
causa da recusa de sua amada?
Apesar das desconfianças em relação à
afirmação de Juca Lopes, algumas pessoas, em canoa, foram pelo Mar Pequeno até
a Pedra da Paixão. E fizeram a terrível descoberta: sobre a pedra estavam,
vazias, as duas garrafas de pinga e dois vidros de arsênico, também vazios.
João tinha mesmo se jogado da pedra para o mar! Os mergulhadores, sem
equipamentos de homens-rãs, foram encontrar o corpo de João Teodoro no fundo da
água, preso numa reentrância da pedra.
Trouxeram o corpo à tona e o colocaram na
canoa. Todo roído pelos siris e outros crustáceos, João exibia as unhas das
mãos viradas para trás. Era uma evidência de que o jovem, mesmo embriagado, ao
finalmente se atirar ao mar, arrependera-se de seu ato desesperado e quisera se
salvar a todo custo. Porém, justamente por estar embriagado e já sem forças,
não conseguira escalar a enorme e íngreme Pedra da Paixão.
A cidade sentiu a morte de João Teodoro.
E muitos olharam para Tereza F. com olhares acusadores. Mas a jovem não tivera
culpa: apenas fora forçada a desistir do namoro devido à pressão dos pais. Estes,
sim, mereciam a reprovação popular. Tereza chegou a ficar doente, de remorso. Passou
a usar luto fechado, como faziam as viúvas naquele tempo.
O tempo foi passando, e tudo voltou à
normalidade na pacata cidade. Tereza F. acabou casando com um dono de barco que
transportava banana para Santos, agora devidamente autorizada pelos pais.
CONCLUSÃO
Pesquisando os demais exemplares da “Tribuna de Iguape”, encontrei em seu
número 419, de 15 de abril de 1923, na seção “Obituário”, a relação dos cadáveres sepultados no Cemitério
Municipal de Iguape durante o mês de fevereiro daquele ano. Consta que, no dia
4 de fevereiro, foi sepultado o corpo do jovem “João Ribeiro de Aguiar, solteiro, com 21 anos e 8 meses, filho de
Manoel Theodoro Ribeiro”.
Apesar das divergências das idades (19
anos, na edição que noticiou o suicídio; 21 anos e 8 meses, no “Obituário”), não tenho dúvidas de que
João Ribeiro de Aguiar, citado na “Tribuna
de Iguape”, e João Teodoro, citado no livro “Iguape de Outrora” de Paulo de Avelar, são a mesma e única pessoa.
O jovem era conhecido por “João Teodoro”
certamente por causa do pai, que se chamava Manoel Theodoro. A sua irmã,
curiosamente, chamava-se Maria Teodora. O jornal escreveu a notícia no calor da
hora. Paulo de Avelar apelou à sua memória cerca de 50 anos após o acontecido.
Eis a história do drama que chocou a
cidade de Iguape naquele ano de 1923 e que, a partir de então, passou a fazer
parte do imaginário iguapense.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/