No tempo do ouro, a Casa da
Fundição de Iguape (atual Museu Municipal) – que fundia e quintava (cobrava o
dízimo) todo o ouro produzido no Vale do Ribeira –, era dirigida pelo “Almotacel”
Manoel dos Reis. O historiador Waldemiro
Fortes (1873-1932) assim descreve esse ilustre personagem:
Uma história de amor na vila de Iguape em 1648 |
“Usava cabelos penteados à nazareno que desciam até os ombros, cuja brancura lhe dava um aspecto de grande respeito. Era alto, magro e de cor semi-bronzeada. Vestia-se de casaqueta preta, calção de colete branco, meias compridas da mesma cor e sapatos rasos de verniz com fivelas de prata”.
Manoel dos Reis ocupava o cargo de Almotacel (inspetor de pesos e
medidas), ostentando o imponente título de “provedor dos quintos reais”. Era
ele quem estabelecia os preços dos mantimentos e fiscalizava os pesos e medidas
dos mesmos e sua venda a miúdo. Recebedor do quinto do ouro, tendo à sua
disposição pedestres que o conduzia até Santos, o Almotacel era quem executava
todas as normas e processos pertinentes à mineração e fundição das barras de
ouro.
Foi o chefe
da Câmara Municipal, sendo esse cargo vitalício e hereditário para ele. Andava
sempre com um grande bastão, que media cerca de dois metros, o qual lhe impunha
um ar de dignatário.
O povo o
obedecia com o máximo respeito e cumpria suas ordens fielmente, consultando-o
sempre sobre quaisquer negócios, tanto em benefício geral como particular. O
Almotacel veio a falecer com a avançada idade de 98 anos, sendo seu corpo
sepultado sob o altar-mor da antiga Igreja de Nossa Senhora das Neves no dia 19
de abril de 1685.
Sobre o
caráter e a determinação do Almotacel, Waldemiro Fortes narra uma emocionante
história que ocorreu no mês de maio de 1648, exatamente seis meses após o
aparecimento da imagem do Senhor Bom Jesus.
No dia 2 de
maio daquele ano, o Almotacel foi procurado por um velho português chamado
Thomaz, acompanhado de sua filha Maria, de 18 anos, e de um moço chamado Paulo,
de 22 anos, que era aprendiz de armador de navios.
O velho
Thomaz era armador de pequenos navios e tinha uma oficina na cidade do Porto. A
fatalidade dessa história é que a sua única filha, formosíssima, despertou o
interesse de um poderoso fidalgo da região, que passou a cortejá-la
insistentemente, sem lograr êxito.
A bela jovem
amava o aprendiz de construção naval, Paulo, e desdenhava as propostas do
fidalgo, que desejava a todo custo casar-se com a donzela. Desprezado, o nobre
se tomou de incontida ira pela família da moça, a tal ponto que foram obrigados
a sair de Portugal, fugindo para o Brasil.
Ao chegarem
nas imediações da Jureia, o barco em que viajavam apresentou problemas, e a
família achou por bem ficar em
Iguape. Foi então que procuraram o Almotacel, a autoridade
maior da vila, e lhe contaram a sua infelicidade. Manoel dos Reis
impressionou-se pela história e, sabiamente, percebendo o amor sincero que
existia entre Maria e Paulo, aconselhou-os a se casarem ali mesmo, na vila.
E, assim,
quando chegou o dia do enlace, o Almotacel, estando a andar por uma rua do
lugar, foi repentinamente abordado por um vulto escondido sob uma longa capa,
que lhe ofereceu a vultosa quantia de mil cruzados em ouro para que impedisse o
casamento dos dois jovens. Manoel dos Reis, surpreendido com semelhante proposta,
recusou-a, e foi para a sua casa, sob o olhar furioso do desconhecido.
Nesse
momento, se aproximava da Igreja de Nossa Senhora das Neves o cortejo nupcial.
De repente, o misterioso indivíduo avança com um punhal na direção do grupo,
tentando ferir Paulo. Maria, no mesmo instante, invocando a proteção do Bom
Jesus, deu um grito, assustando o agressor, que tropeçou e caiu de peito sobre
o punhal, ferindo-se mortalmente.
Socorrido, o
enigmático encapuçado foi levado às pressas até a casa do Almotacel, e, com
enorme surpresa, foram descobrir que aquele não era outro senão o vingativo
fidalgo, que viera até Iguape para desafrontar o desprezo de Maria.
Apesar de
tudo, foi tratado com muita dedicação pelo jovem casal, já agora unido pelo
matrimônio. Confessou, então, arrependido, que viera no mesmo navio, disfarçado
de marinheiro, com o propósito de raptar a jovem, ou matá-la, caso não
conseguisse seu intento.
E, dizendo
essas palavras, faleceu logo em seguida.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/