O escritor Afonso Frederico
Schmidt nasceu em Cubatão em 1894 e faleceu em São Paulo em 1964. Autor
de livros consagrados, Schmidt sempre teve estreita ligação com o Vale do
Ribeira, que lhe serviu de inspiração para diversos contos. Um de seus livros
tem o curioso título de “O Tesouro de
Cananeia”.
Gravura meramente ilustrativa. |
Em visita a essa histórica cidade, palco de tantas glórias para História do Brasil, Afonso Schmidt teve a oportunidade de entabular longa prosa com o velho caiçara seu Lolô, figura muita conhecida à época.
Seu Lolô era tão velho que nem
ele mesmo sabia a própria idade. Sabia reconhecer as pegadas das pessoas na
areia da praia, e dizia se eram de conhecidos ou de “gente de fora”. Tinha
olhos de bugre.
Naquela época, Cananeia já era
uma cidade em
decadência. O fausto do tempo das armações de baleias ou dos
estaleiros de navios já se perdera na pátina do tempo. Afonso Schmidt escreveu:
“Às vezes o marasmo é tão profundo que
dói, o silêncio tão profundo que aflige”. Mas demonstrou o seu amor por Cananeia: “A cidade é velha, humilde e tem pitiú de
maresia. Mas boa, boa como o pão!”.
Schmidt fala da velha figueira
que, segundo os antigos, fora mandada plantar pelo próprio Martim Afonso. A
colossal figueira emitia eco de seu robusto tronco. A molecada chegava perto
dela e gritava: “Você me quer bem?”, ao que a figueira respondia: “Bem”. Ou então: “Não gosta de anão?”, e a figueira:
“Não”. Coisas antigas de Cananeia.
Sobre o lendário tesouro da Ilha
do Bom Abrigo, Schmidt ouviu do velho Lolô a seguinte história.
A galera Havelock, comandada pelo capitão Bow-Legged, tinha vindo do
Pacífico, depois de aventuras na Argélia. Ao se aproximar do Bom Abrigo, a
galera bateu nas pedras e ficou encalhada. Salvaram-se apenas o capitão, o
grumete Sharp (de uma escuna inglesa saqueada) e meia dúzia de marinheiros.
O velho Lolô garantia que a
galera naufragara na Ponta de Leste, onde, nos tempos de dantes, existiam
armações de baleias. O avó de Lolô, de alcunha Piropava (curiosamente
semelhante a “Peroupava”, antigo bairro de Iguape) encontrara os destroços da
galera. Os pescadores chamavam o local de Saco
da Galera.
De pistola em punho, Bow-Legged
obrigou os marujos a transportarem as arcas com o seu tesouro para a praia.
Seguindo pelo jundu, chegaram a um
barranco, onde o capitão obrigou a marujada a escavar um túnel de duas braças
de profundidade, no qual as arcas foram depositadas.
À noite, quando todos dormiam,
menos Sharp, o capitão se livrou dos grumetes à machadinha. Sharp conseguiu
fugir para o continente. Depois seguiu para o Rio Grande do Sul. Registrou
todos os detalhes do esconderijo do tesouro em um pergaminho.
No ano seguinte, doente e
prevendo morte próxima, procurou um médico, que tratou dele por alguns meses.
Em agradecimento, Sharp deu ao médico o pergaminho, que, mesmo guardando-o, não
lhe deu grande importância.
Casando uma filha, o médico presenteou-a
com o pergaminho. Passados cinquenta anos, viúva, a senhora visitou, em São Paulo , o professor
Eduardo Pereira, que ficou com o documento.
Em 1910, o Dr. Carlos Pereira,
filho de Eduardo, foi até a Ilha do Bom Abrigo, acompanhado pelo coronel
Meireles, da Secretaria da Justiça, de juízes e um ministro do Tribunal. De
pergaminho em punho, localizaram o local do tesouro, mas, para a decepção
geral, não conseguiram localizar o dito cujo...
A Ilha do Bom Abrigo é cheia de
lendas. Dizem que vagam por lá assombrações, fantasmas com grilhões, ouvem-se
soluços profundos, cochichos, rezas, pragas, uivos, gritos lancinantes.
Certa feita, marinheiros de um
navio norueguês decidiram pernoitar na ilha. Viram e ouviram coisas
monstruosas, que os deixaram apavorados. Não pensaram duas vezes e voltaram ao
mar. No antigo farol, contam que vultos misteriosos subiam pelas escadarias sob
a luz bruxuleante do luar...
São histórias da velha Cananeia.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br