Quem nos contou este interessantíssimo caso – apesar de rotulado como “lenda”, realmente ocorreu, lá pelos idos do Segundo Império –, foi o historiador iguapense Waldemiro Fortes (1873-1932), que resgatou muitas e interessantes histórias da região.
Numa das margens do rio Ribeira, mais precisamente no local denominado Volta do Saraiva, em Iguape, existia, em meados do século XIX, uma pequena casa de palha, onde morava o casal de caboclos Batata e Nhá Tuca.
Certa manhã, Batata se levantou bem cedo e, pretendendo passarinhar, pegou a sua espingarda pica-pau (daquelas de carregar pela boca) e a sacola de munição, partindo logo em seguida para a mata virgem. Caminhou durante horas pela floresta até se deparar com uma frondosa figueira, carregada com frutos maduros, que eram saboreados por uma incrível quantidade de pássaros.
Vez ou outra, Batata empunhava a sua pica-pau e, em certeira pontaria, derrubava pássaros previamente escolhidos. Por fim, tendo abatidos muitos deles, e havendo acabado a munição, o caboclo cortou um forte cipó e atou as aves pelo pescoço à sua cintura.
Nessa ocasião – mais ou menos em 1876 –, o vapor “São Pedro” (anteriormente chamado de “Iguapense”), repleto de seletos passageiros, singrava pela primeira vez as águas do rio Ribeira, em viagem de turismo, soltando, a intervalos regulares, um estridente apito.
Quando a embarcação se aproximou da casa dos caboclos, Nhá Tuca, que nunca ouvira semelhante som, pôs-se a correr afoitamente pelo mato, bradando pelo marido. Batata, igualmente assustado pelo apito do vapor, que cada vez mais se aproximava, disparou em louca correria pela floresta.
O casal, extremamente supersticioso, acreditou que tal ruído fosse emitido por um saci endemoninhado. Correndo pelo mato, Batata foi encontrar Nhá Tuca, que estava com as roupas totalmente rasgadas e o corpo bastante machucado, ajoelhada próxima a uma touceira de carapiás, que dizem ter o poder de espantar o coisa-ruim.
Daí a pouco, o vapor “São Pedro”, já em demanda do porto de Iguape, apitou novamente e, em virtude da distância, o som ia se tornando gradativamente mais fraco. O casal, ingenuamente, pensou que o “saci” estava indo embora.
– Está vendo, mulher... – disse Batata. – O diabo do saci já foi simbora, depois de ter dado seu grito endemoninhado e trazer água no peito que até fazia sonununga!...
– É verdade – disse Nhá Tuca, ainda abalada. – E o bicho até fazia timimina na frente... – E, virando-se para o rio, enquanto alisava as pernas amortecidas e escalabradas pelos espinhos: – Que vá simbora esse tinhoso e não volte mais!...
Foi nessa hora que Batata reparou que perdera a sua velha espingarda, e espantou-se ao ver em torno da cintura algumas cabeças de pássaros. Na ânsia de correr do saci, caindo e se levantando no meio dos espinhais, os corpos dos pássaros foram ficando espalhados pelo mato.
Nhá Tuca se benzia da cabeça aos pés e dizia que tudo fora obra do maldito saci. Que fosse para as profundezas debaixo da terra e arrebentasse por lá.
Passado o susto, os dois seguiram para casa, sangrados em arranhões, esfoladelas e com as roupas aos trapos, enquanto resmungavam baixinho:
– Maldito saci!... Maldito saci!...
NOTA
* sonununga: barulho das rodas na água
* timimina: espuma
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br |
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