João Albano Mendes da Silva,
mais conhecido pelo pseudônimo de “J. Mendes”, foi um dos mais importantes
vultos das letras e da inteligência valerribeirense em todos os tempos Nascido
em Sete Barras no dia 26 de setembro de 1918, era filho único do casal de
lavradores Tibúrcio Sebastião da Silva e Maria Eugênia de França. Sua família
veio para Eldorado (que então se chamava Xiririca) quando João Mendes tinha
apenas três meses de idade, estabelecendo-se num sítio localizado no município.
João Mendes discursando na inauguração do busto de Francisca Júlia, em 31-8-1973. Ao centro, de terno cinza, o prof. Sólon Borges dos Reis. |
João Mendes cursou até o
quarto ano primário no Grupo Escolar de Xiririca, sendo um autodidata. Aos 19
anos, ingressou na agência dos Correios e Telégrafos da cidade, onde trabalhou
por alguns anos, até que foi convidado para trabalhar no Cartório do Registro
Civil de Eldorado, do qual era escrivão o conhecido poeta eldoradense Domingos
Bauer Leite (pai da ex-prefeita de Miracatu, professora Dea Viana Leite Moreira
da Silva, e avô do deputado federal Samuel Moreira). Depois que Bauer se
aposentou, João Mendes assumiu a titularidade do Cartório, no qual veio a se
aposentar em 1986, após quatro décadas dedicadas ao Registro Civil, onde também
acumulou as funções de distribuidor, contador, partidor, avaliador e
depositário público do Juízo de Direito da Comarca de Eldorado.
Em 11 de fevereiro de 1950,
João Mendes se casou com Maria Helga Ferreira Mendes (mais conhecida por “Dona
Nenê”), filha de João Vitorino Ferreira e Dulce Maria de Azevedo Ferreira. De
tradicional família eldoradense, dona Maria Helga é irmã de Maria Ursulina
Ferreira Carneiro, que foi casada com o ex-prefeito de Eldorado, José Edgar
Carneiro dos Santos; José Vitorino Ferreira; Maria do Rosário Ferreira Pinto;
João Vitorino Ferreira Filho; e Salvador Roberto da Silva Ferreira. As filhas
do casal são Maria Dulce Mendes Leite e Débora Mendes Fagundes.
O POETA DO
VALE
João Mendes, ao lado da profª Dalva, da Faculdade de Registro, numa Festa da Cultura. |
Por influência do poeta
Domingos Bauer Leite, João Mendes teve despertada a sua vocação para a
literatura. A partir de 1940, começou a publicar as suas crônicas e poesias nos
jornais da região, atividade que manteve ininterruptamente por mais de
cinquenta anos. Toda a sua produção literária foi cuidadosamente arquivada em
dezenas de pastas, que hoje estão sob a guarda de sua viúva. É um valiosíssimo
arquivo que, além de poesias e textos literários, também retrata o cotidiano do
Vale do Ribeira e a sua história.
Em sua longa vida de poeta e
cronista, João Mendes recebeu inúmeros prêmios, diplomas e honrarias, entre os
quais: sócio honorário da Academia Internacional de Letras e Artes do Círculo
do Amor à Vida (1981); Menção Honrosa da Ordem do Campeador (1984); sócio
benemérito da The International Academy of Lethers of England (1985); Honra ao
Mérito do Clube dos Escritores, Trovadores e Poetas de Conceição da Barra (1985);
Honra ao Mérito pela Academia de Letras Municipais do Brasil (1986); Menção
Honrosa da Academia Petropolitana de Poesia Raul de Leoni (1986); Magnífico
Trovador, pela Ordem Brasileira dos Poetas e Literatura de Cordel, de Salvador,
Bahia (1986); etc.
Foi também agraciado com o
diploma de comendador conferido pela Soberana Ordem dos Cavaleiros de São Paulo
Apóstolo, recebendo ainda o diploma e a medalha de Mérito da Integração
Nacional, conferido pela mesma ordem. Foi membro da Casa do Poeta, secções de
São Paulo e Santos; da União Brasileira dos Trovadores (sendo delegado em sua
cidade); do Movimento Poético Nacional; e teve o seu nome indicado para uma
vaga na Academia Internacional de Letras, em seção de 31 de agosto de 1978.
Participou de encontros culturais em São Paulo, Santos e São Vicente,
promovidos pela Casa do Poeta e União dos Trovadores. Idealizou o I Festival de
Poesia do Vale do Ribeira, realizado em Eldorado no mês de março de 1976.
Durante sua intensa atividade
literária e jornalística, que exerceu durante mais de meio século, João Mendes
colaborou para inúmeros jornais e periódicos, entre os quais: “Folha da Baixada”, onde manteve a
coluna “Crônica de Eldorado”; “Diário
Popular”, de São Paulo, escrevendo para a seção “Roteiro de Livros”; “Letras
da Província”, de Limeira; “Correio
do Vale”, de Registro; “Jornal de
Itapecerica”, de Itapecerica da Serra; “A
Comarca”, de Araçatuba; “A Tribuna de
Descalvado”; “Jornal de Mirandópolis”;
“O Fanal”, órgão da Casa do Poeta de
São Paulo; “A Tribuna do Ribeira”,
editado em Registro, pertencente ao grupo “A
Tribuna”, de Santos; “A Voz da
Poesia”, órgão do Movimento Poético Nacional; “Jornal de Iguape”; etc.
Em sua vida pública, exerceu a
vereança em duas legislaturas: 1948 a 1951 e 1952 a 1955, pelo antigo Partido
Democrático Social (PDS). Era muito amigo do governador Laudo Natel, que
administrou o Estado de São Paulo nos períodos de 1966-1967 e 1971-1975.
ACADEMIA
ELDORADENSE DE LETRAS
Para homenagear Francisca
Júlia (1871-1920), a grande poetisa brasileira nascida em Eldorado, o Centro do
Professorado Paulista (CPP) doou à cidade um busto em bronze da poetisa. A
cerimônia de inauguração deu-se na tarde do dia 31 de agosto de 1973, na Praça
de Nossa Senhora da Guia. O busto foi solenemente entregue à cidade pelo proessor
Sólon Borges dos Reis (1917-2006), presidente do CPP, ilustre educador,
escritor e deputado paulista. João Mendes discursou agradecendo em nome do povo
de Eldorado. Um dos idealizadores dessa homenagem foi o prof. Reinaldo de Maria
Freitas e Silva (Reizinho).
Em agosto de 1976, João
Mendes, com o apoio de amigos ligados à Cultura, realizava a I Festa da Cultura
de Eldorado, como parte da “Semana de Francisca Júlia”. Esse evento teve várias
edições até o final da década de 1980. Poetas e escritores de todo o Brasil
vinham a Eldorado para abrilhantar essa grande festa da cultura regional.
Em 27 de agosto de 1977, era
empossada a diretoria da “Casa de Francisca Júlia”, que seria o embrião e a
mantenedora da Academia Eldoradense de Letras (AEL). Como presidente, foi
escolhido João Mendes, tendo como vice Edson José Gomes; secretária: proessora
Neusa Brandão Nogueira; tesoureira: professora Maria Santana L. Pereira;
coordenadores: Terezinha Benedita Ferreira e professora Maria das Graças
Freitas Braga; relações públicas: professor Milton Benedito Ribeiro, professor
Aparício do Carmo Gomes Filho e poeta Benedito Passos Ferreira.
A Academia Eldoradense de
Letras, por sua vez, seria inaugurada em 11 de fevereiro de 1978, numa grande solenidade
cultural realizada no Clube dos Jovens. A sua diretoria era presidida por João
Mendes, tendo como vice Edson Gomes, sendo presidente de honra o Bispo de
Registro, Dom Apparecido José Dias. Participaram a inauguração da AEL o
presidente da Academia Santista de Letras, Aristeu Bulhões; o presidente da
Casa do Poeta de São Paulo, comendador Benevides Beraldo; além das poetisas
Maria Adélia Alba Salerno, de Santos, Maria Adélia Vitória Ferreira, do
Movimento Poético Nacional, de São Paulo, e o poeta José Pereira Lima, de
Registro.
Houve discursos e entrega de
diplomas, medalhas e distintivos aos acadêmicos, sendo o primeiro a ser
empossado o poeta João Vitorino Ferreira, de Eldorado. A parte artística foi
apresentada pelos professores Edson José Gomes e Maria das Graças Freitas
Braga, com declamação de poesias de poetas locais e apresentação do Coral da
“Casa de Francisca Júlia”, sob a direção do professor Milton Benedito Ribeiro e
Terezinha Ferreira. Entre os primeiros acadêmicos estavam os poetas Avelino
Gomes da Silva (Avelsemog) e Alzira Pacheco Lomba, que lançaram livros
naquele mês (o prefácio do livro de Avelino foi escrito por João Mendes). Eu
tive a honra de ser empossado em 1983, por ocasião da VII Festa da Cultura.
CIDADÃO
ELDORADENSE
João Mendes era um homem
reservado, introspectivo, não apreciando aparições públicas. No entanto, era um
excelente orador, sendo frequentemente convidado para discursar em solenidades
cívicas e culturais realizadas na cidade e região. O seu passatempo predileto,
além da atividade literária, era a pescaria. Sempre que podia, ele pescava no rio
Ribeira, na altura do sítio “Bananal Grande”, de sua propriedade.
Em reconhecimento por seu
intenso trabalho cultural ao longo de toda a vida, João Mendes recebeu o título
de “Cidadão Eldoradense”, através do Decreto nº 2, de 29 de agosto de 1985, de
autoria do vereador Rubens Mariano.
O poeta faleceu, aos 78 anos,
no dia 25 de maio de 1997, quando já era uma lenda viva no cenário literário e
intelectual do Vale do Ribeira. Deixou mais de três mil poesias, muitas das
quais inéditas, que estão à espera de serem reunidas em livros.
ALGUMAS POESIAS DE JOÃO MENDES
Um dos muitos cadernos de poesia deixados por João Mendes. |
LONGE
Às vezes fico espantado:
É que procurando-me,
Buscando-me
Não me entendo em mim!
Onde estarei?
Para onde fui?
Onde andarei?
– Pergunto, aflito,
Procurando-me em vão,
Em vão me agito,
Cansado, desolado,
Preocupado,
Sem no entanto
Encontrar-me
Nem dentro de mim mesmo,
Em nenhum recanto do meu ser.
É que parti!
Estou longe, na distância,
Longe, bem longe mesmo,
Viajando nas asas da saudade,
Percorrendo a distante aldeia da infância,
Procurando a felicidade que perdi.
(Jornal “Na Hora”, nº 387, de 3l/5/1997)
REENCONTRO
Há na vida um momento misterioso,
Uma fração de tempo, no infinito
Em que nos encontramos conosco mesmo
E descobrimos a alma procurada,
Que, como a nossa, vagava a esmo,
Sem teto, sem pão, sem ter moradia.
E no encontro das almas – que apoteose!
Uma para a outra além criada,
Distante uma da outra vivia em vão;
Mas reencontradas, ei-las que seguem
O caminho sideral e sem limites
Dos que são livres e felizes são.
(Jornal “Na Hora”, nº 387, de 3l/5/1997)
MEUS MUNDOS
Em pensamento criei mundos,
Acendi astros
Na cúpula dos céus...
Plantei florestas,
Criei rios,
Em cada galho deixei um pássaro a cantar
Imaginei dias bonitos
E noites calmas, de luar...
Uma esperança fixei em cada arrebol!
Plantei flores em todos os caminhos
Só flores – não semeei espinhos,
E pelas estradas só havia sol!
Eliminei dos mares os escolhos
E nas encostas não coloquei abrolhos
Nunca inventei e nem pensei em tempestades;
Mas foi justamente aí que errei:
Vieram os ventos, vieram as águas,
E me afoguei num turbilhão de mágoas,
Dentro dos próprios mundos que criei...
(Jornal “Na Hora”, nº 387, de 3l/5/1997)
SANTUÁRIO DO BOM JESUS
Santuário do Bom Jesus, feito sobre areia,
Edifício majestoso de fé e de beleza,
Coluna da verdade de onde a oração se alteia
Na expressão melhor de sua firmeza.
Ao ver-te de longe minha alma se enleia,
E o pensamento elevo, na certeza
De que existe um Deus que a fé incendeia
No coração do povo, em toda profundeza.
Santuário do Bom Jesus! Ó palácio austero
Que desafia o tempo e o mundo fero,
Por sobre a areia edificado, embora.
E a procissão infinda de romeiros
Que vem a ti desde os primeiros,
Continuará pelos séculos afora.
Eldorado, 1951
(“Jornal de Iguape”, nº 7, de 7/4/1951)
MINHA OFERTA
Senhor!
Nesta Quaresma,
Neste tempo de penitência,
Não tenho, como Madalena,
Perfumes, para ungirTeus pés...
Quisera ungi-los com amor,
Perfumá-los com ardor,
E não podendo assim fazer,
Compunge-me a alma tamanha pena.
Senhor!
Venho trazer-Te tudo que possuo,
Aos Teus pés na cruz pregados,
E de tudo eis a doação:
Trago-me inteiro, que sou todo pecados
Mas também o desejo imenso de ser bom.
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 39, de 8/3/1955)
FLAGELAÇÃO
Ataram Jesus à coluna
E flagelaram-no impiedosamente.
– Grande culpado era!
Foram meus pecados, ó Senhor,
Que repetidamente
Vos fizeram sofrer assim.
Mas, ó meu grande amigo e bom Jesus,
Si vos abandonei naquele transe amargo
Deixando-vos só em meio a ignomia,
Não me deixes a sós,
Si o mundo mau me flagelar, um dia...
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 40, de 15/3/1955)
QUANDO ELAS PASSAM
As saudades passam, em bando,
Na tarde azul!
Revoam, calmas, silenciosas,
Ao bater do velho sino,
A bater, a gemer,
Na Ave Maria!...
Há misticismo no ar,
Há bater de corações
Dentro dos peitos, a arfar;
Há pensamentos ao longe,
Na tarde azul,
Quando as saudades passam, em bando...
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 41, de 23/3/1955)
MULTIPLICAÇÃO
Com aqueles pães,
E aqueles peixes,
Pouquíssimos que eram,
Jesus operou a multiplicação
E saciou a multidão.
Milagre divinal,
Sem dúvida!
Mas, milagre maior,
Incomensurável,
Quasi incompreensível
De amor e caridade,
Ah! dos puros, – a sacrossanta via
Para o céu, –
É a multiplicação mesma de Jesus
Na Sagrada Eucaristia.
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 43, de 10/4/1955)
VOAR
Não importa que os pés
Estejam presos à terra
E nem importa que o corpo
Sofra, como tem de sofrer
As conseqüências da luta...
O que importa é que o pensamento
Voe alto, muito alto,
Sobrepaire à uma contingência,
E busque, lá no alto, muito alto,
Toda a beleza de que a alma necessita
Para compreender e amor ao Criador.
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 45 de 30/4/1955)
PRECE MATINAL
A madrugada alfaiou o cabeço das serras
De orvalho cintilante,
Formando candelabros
Nos galhos das árvores...
E o incenso da neblina
Foi aos vales
Para incensar o céu...
O coro orquestral das aves puras
Acordou a mata.
O sol veio vindo, cauteloso:
– Era manhã!
O Ribeira passou, então,
Recitando a prece matinal.
Eldorado, 1954
(“Jornal de Iguape”, nº 49, de 9/6/1955)
CIDADE VELHA
Minha cidade vai ficando velha!
As ruas, vão, cada vez mais,
Mais minguadas de casas vão ficando.
E as casas, esparsas, tão distantes,
Sentem saudades das outras que existiram...
As casas são como a gente:
Sentem saudades das irmãs
Que os homens inconscientes demoliram...
(“Jornal de Iguape”, nº 63, de 2/10/1955)
ELA ESPEROU...
Ainda era bem manhã, quando
Ela sentou-se à beira do caminho,
E, sozinha, ficou esperando, esperando
O esperado alguém que nunca veio...
Levas de sonhos por ali passaram
E a viram olhando, sempre olhando,
O caminhante que nunca apareceu.
Esperanças passaram por ali, também,
Noites e dias, intérminos, seguidos,
Ela ficou ali...
E hoje, quem por ali passar
Verá à beira do caminho,
Não uma mulher esperando alguém,
Mas uma estátua apenas, desenhada em prantos,
Imagem somente do que foi,
Coroada, agora, de cabelos brancos.
Eldorado, 1954
(“Suplemento Literário” do “Jornal de Iguape”, 1955)
ROBERTO
FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras sócio do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br