Deixando de lado as discussões sobre a “bondade” da Princesa Izabel, que libertou os escravos em 13 de maio de 1888, vamos traçar hoje algumas linhas sobre a escravidão no Vale do Ribeira.
Em muitas cidades da região a escravidão deixou marcas indeléveis, até hoje notadas, apesar da sutileza e da natural interação com a “cultura branca”. Um dos exemplos mais marcante da escravidão negra no Vale está no bairro de Ivaporunduva, em Eldorado.
Registra o cientista Edmundo Krug que esse povoado foi fundado pelos escravos pertencentes aos mineradores que, pelos idos do século XVIII, procuravam ouro na antiga Xiririca. Durante séculos, e até hoje, Ivaporunduva conservou intactos seus costumes e tradições, sendo sua população exclusivamente formada por negros, descendentes dos primitivos escravos.
O antropólogo Renato S. Queiroz, em sua tese de doutorado “Caipiras Negros no Vale do Ribeira”, analisa a formação histórica e a evolução desse povoado, destacando as tradições e crendices. Segundo Queiroz, nos anos coloniais, ali chegou uma senhora chamada Joana Maria, vinda das Minas Gerais, trazendo consigo muitos escravos para o serviço de mineração do ouro. Essa rica senhora, mais tarde, mandou construir uma capela onde pudessem ser realizadas as cerimônias religiosas, e, ainda, uma casa para sua moradia.
Dona Joana existiu realmente, conforme comprova o Livro do Tombo da Paróquia de Eldorado, hoje desaparecido, citado por Krug. A ilustre dama morreu em 2 de abril de 1802, aos 90 anos, não tendo deixado bem algum, pois durante sua vida distribuiu suas posses aos habitantes do povoado, remunerando com a liberdade os escravos que a serviram.
Ivaporunduva ainda conserva tradições que, seguramente, remontam à época colonial. Como a tradicional Festa de São Gonçalo ou a dedicada à padroeira do bairro, Nossa Senhora do Rosário, bem como outras curiosidades típicas, herdadas dos antigos escravos.
Contam que no bairro foi encontrada uma pepita de ouro que tinha o tamanho e o formato de uma cabeça de macaco. Essa pepita despertou a cobiça de um jovem, filho de um dos principais mineradores da região, que a roubou, gerando, assim, dramáticos conflitos.
Diz-se, também, que um casal de escravos trouxe dos sertões do Ribeira outro pedaço de ouro em forma de coração, bem como muito ouro em pó e pedaços de prata.
Em Ivaporunduva, segundo afiançam as tradições locais, quando havia festa no arraial, as escravas compareciam todas com os cabelos dourados por ouro em pó, o que bem demonstra a riqueza do povoado.
O comendador Luiz Álvares da Silva (Cananeia, 1808 – Iguape, 1883), registrou, em seu diário pessoal, a história de uma negra muito velha que pertencia a João Dias Baptista, morador em Ivaporunduva. Com a morte de seu amo, a escrava ficou pertencendo à viúva. Após a morte desta, passou a seu filho e, falecendo este, finalmente ficou livre.
Todos os seus proprietários morreram com avançada idade e a escrava não faleceu com menos de 105 anos. Segundo o comendador, a velha morreu “de um mal que não tem cura que é a velhice...”
Miracatu, a antiga Prainha, também viveu os dias da Escravidão. Ali viviam agricultores abastados, como o francês Pierre Laragnoit, ou os brasileiros Manoel Alves Carneiro e Luiz de Barros Carneiro, além de outros.
O historiador Paulo de Castro Laragnoit (1923-2011), descendente do fundador de Miracatu, em seu livro “A Vila de Prainha”, conta episódios pitorescos desse período. Como o caso da Preta Bebé, que pertencia ao velho Laragnoit. Bebé era uma pessoa carismática, faladora, contadora de muitos “causos”.
Cananeia, a velha cidade quinhentista, que também foi palco da mineração do ouro, igualmente viveu a época da escravidão negra. O historiador Antônio Paulino de Almeida (1882-1969), em inúmeros trabalhos, conta passagens interessantes da história da “Cidade Ilustre do Brasil”, que atingiu seu esplendor em fins do século XVIII.
As estatísticas publicadas por Paulino são importantes porque, em várias épocas, a população negra, entre escravos e homens de cor livres, era bem maior que a população branca, o que dá uma ideia da importância do homem negro naquele período.
ROBERTO FORTES, historiador e
jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br