Como toda cidade cujo passado se
perde nas brumas nebulosas da História, Iguape foi palco de acontecimentos
importantes, alguns pitorescos, outros tantos picarescos. Resgatamos do baú do
passado as estripulias de um servo de Deus que, por certo, fez corar as pálidas
faces de muitos eminentíssimos bispos.
Portão do Cemitério São Miguel, em Iguape.( Crédito: José Wilson Francischinelli)
O leitor, com toda a certeza,
jamais ouviu falar dele; em sendo assim, permita-nos apresentá-lo: Moreau,
belga, sacerdote um tanto fora dos moldes exigidos pela sempre tradicional e
respeitada Igreja Romana.
O seu nome de batismo era Jean
Moreau. Chegando em Iguape, passou a se chamar José Moreau (ou José Moraes, para alguns). Pois bem. O
padre Moreau foi vigário na cidade, isso lá pelos idos de 1896/1897, no lusco-fusco do século XIX (desculpem-nos
o expressar um tanto livresco, mas estamos em pleno fin-de-siècle).
Certa feita – os registros históricos
confirmam que foi no dia 26 de setembro de 1897 –, o padre Moreau, em
cumprimento aos seus deveres sacerdotais, foi até a barra do Juquiá, no sítio
do sr. Jacob Vilardo, onde existia uma capelinha. Esse local, como de resto
quase todo o Vale do Ribeira – à exceção de Cananéia e Xiririca (Eldorado) –
pertenciam a Iguape, portanto, também eclesiasticamente, à jurisdição da Paróquia
de Iguape.
O padre Moreau, ao saber que o
vigário de Xiririca, cônego Leon Blondet, francês, fora celebrar a festa da
padroeira Nossa Senhora das Dores no distrito de Prainha (Miracatu), e que
muitos batizados o esperavam ali na barra do Juquiá, desesperou-se a ponto de
ir à capelinha e, num púlpito improvisado, dirigiu-se às pessoas presentes,
cientificando-as de que o vigário de Xiririca não tinha competência para
batizar e casar ali, e que, se praticasse alguns desses atos religiosos, os emolumentos (taxas) pertenceriam
a ele, Moreau.
Entre os que ouviam as
lamentações do agitado padre belga, naquele momento, estava o vigário de
Xiririca, Blondet, que, tendo chegado de Prainha, assistiu, entre atônito e
desorientado, às lamentações de Moreau.
O curioso é que o vigário de
Xiririca, sem dar trela ao seu desarvorado colega, seguiu calmamente para a sua
paróquia no mesmo dia no vapor “Isabel”,
e atrás dele, todo esbaforido, foi, em canoa, o padre Moreau reclamar a entrega
das ofertas de batizados e casamentos recebidas por aquele outro na Vila de
Prainha!...
Outro acontecimento picaresco
envolveu o nosso desassossegado padre Moreau. Por volta da década de 1860, a Irmandade do Bom
Jesus de Iguape doou a imagem de São Miguel à Capela do Cemitério, onde desde
então ficou entronizada. Ocorre que o inquieto padre Moreau entendeu que essa
imagem deveria era ficar na Igreja Matriz de Iguape, dedicada ao Bom Jesus.
Sendo assim, resolveu ir até o
Cemitério e, de revolver em punho, como se estivesse a empunhar um turíbulo ou
outro objeto santo, intimou, sem mais nem menos, o zelador do cemitério a lhe
entregar a imagem de São Miguel. O assustado zelador, sem esboçar qualquer
reação, não teve outra alternativa a não ser passar às abençoadas mãos do padre
o santo sob a sua guarda.
Evidentemente que a notícia desse
inusitado “sequestro” de São Miguel se espalhou como o vento pela cidade,
sempre pacata e sossegada. Sabendo do fato, o intendente de Iguape, major
Ernesto Guilherme Young (1850-1914), inglês da mais ilustre cepa, não perdeu
tempo e foi se encontrar com o “raptor” no campo do Rosário e, no meio de
várias testemunhas, intimou-o a devolver o santo ao seu nicho, no cemitério, o
que Moreau foi obrigado a fazer por força das circunstâncias. O major Young requereu
a vistoria, exame e auto de corpo-de-delito na capela e na imagem.
Assim, o desassossegado Moreau
teve que amargar não ter conseguido o seu intento. Pouco depois, os seus
superiores eclesiásticos o “convidaram” a procurar outros ares paroquianos...
São histórias da velha Iguape!
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br