Pesquisando os muitos processos de
habilitação de casamento da Paróquia de Iguape (à qual estavam subordinados os
demais distritos, hoje municípios, do Vale do Ribeira), deparamo-nos com alguns
casos interessantes, que merecem ser resgatados à posteridade como testemunhos
das relações sociais e sexuais em nossa região, em épocas recuadas. Graças a
esses documentos, muitas cenas do cotidiano valerribeirense podem ser
reconstituídas.
Causa espanto o número de defloramentos
registrados nos bairros e vilas da região, conforme verificamos nos assentamentos
paroquiais. Sob a falsa promessa de casamento, o rapaz conseguia seduzir a
jovem, que se entregava ao parceiro, iludida pela esperança de uma união
sacramentada pela Igreja. Em muitos dos casos analisados, essas promessas
tinham o fito único e exclusivo de tirar a “pureza” da mulher cobiçada. Vejamos
dois desses casos.
Em 1813, ainda durante a Colônia, o mulato Joaquim
Pedro (ou Pedroso), teve um relacionamento amoroso com a mulata Brígida (ou
Brízida). Joaquim Pedro nasceu em Iguape em 17 de junho de 1793, filho legítimo
de Silvestre da Costa, natural de Iguape, e Joanna Gambina, “da nação
Angola”, libertos. Os pais de Joaquim foram pedir a mão de Brígida ao seu
avô e padrinho, Mathias, escravo do senhor Raimundo Pinto de Almeida. Sob a
promessa de que “elle e seos pais tinhão pedido para mulher”, a jovem
Brígida se entregou a Joaquim, que, “debaixo deste engano”, a “desonestou”.
Nesse meio tempo, Joaquim Pedro propôs casamento a
Emerenciana, “parda forra”, viúva de Manuel da Silva Barbalho, falecido
em 4 de abril de 1809, aos 37 anos, “moradores na Prainha” (região próxima ao Icapara, em Iguape).
Sabendo disso, o velho Mathias solicitou junto ao Juízo Eclesiástico de Iguape
o impedimento desse casamento sob a alegação de que Joaquim já prometera
casamento à sua neta Brígida. O escravo Mathias era natural da Costa de Guiné e
tinha 70 anos, “pouco mais ou menos”. Em depoimento ao padre, Mathias
disse que a sua neta fora “desonestada pelo dito Joaquim Pedro”.
Em sua defesa, Joaquim Pedro arrolou os
escravos Ignácio e Gabriel, também pertencentes ao senhor Raimundo Pinto de
Almeida. Ignácio confirmou que Mathias “justou e tratou casar huma sua neta
de nome Brizida com o impedido Joaquim Pedro”. Porém, depois do trato
feito, Joaquim Pedro foi preso, pois circulara a “noticia que hera vadio”.
Por causa disso, “se desgostarão e desfizerão o trato de cazamento de parte
do dito Mathias, e de ambos os contrahidos”.
Sendo assim, livre, leve e solto, Joaquim
Pedro tratou casamento com Emerenciana, “ao que sahio o dito Mathias
individamente embaraçar estes segundos esponsaes, quando razão algum não havia,
por estarem dissolvidos do primeiro, e elle testemunha prezenciou tudo”. E
mais, Ignácio garantiu que Mathias pretendia outro casamento para a sua neta “com
hum João, o que até o prezente não se tem efetuado”. O escravo Gabriel
confirmou o que foi dito por Ignácio.
Em sentença de 11
de agosto de 1813, o “Muito Reverendo Vigário da Vara e Juiz dos Cazamentos”,
padre Diogo Rodrigues Silva, julgou que não havia nenhum impedimento à união
entre Joaquim e Emerenciana, despachando o seguinte: “Vistos estes autos e
depoimentos das testemunhas não procede impedimento de esponsaes, e julgo o
contrahente absolvido delles, e o habilito para o Sacramento do Matrimonio.”
Em
1817, outro caso de impedimento pode ser localizado nos arquivos paroquiais.
Manuel Ferreira – “que vive de suas lavouras, de idade que diz ser de trinta
e oito annos para mais ou menos” – pretendia se casar com Maria Teresa,
filha de Maria Rodrigues. Acontece que Manuel tivera uma “noite de amor” com
Anna Bebianna, filha de Matildes de Oliveira, irmã de Maria Rodrigues. (Maria
Teresa e Anna Bebianna, portanto, eram “primas irmans”...). Em
depoimento ao padre Diogo Rodrigues Silva, em 27 de dezembro de 1817, Manuel
Ferreira confessou que “a muitos annos tivera copula por huma vez com Anna
Bebianna”.
Em 31 de dezembro
desse mesmo ano, o vigário colado e da Vara, Diogo Rodrigues Silva, decidiu que
não havia impedimento para Manuel Ferreira e Maria Teresa se casarem. Ordenou,
assim, ao padre coadjutor, João Chrisostomo de Oliveira Salgado Bueno (que em
1829 seria deputado provincial pelo Vale do Ribeira), para notificar aos contraentes.
Em 12 de janeiro de 1818, o padre João Chrisostomo certificava que Manuel
Ferreira e Maria Teresa “forão absolvidos das conjuras em que houvessem
incorridos”.
Em satisfação às
penitências impostas, “forão examinados da Doutrina Christã, e approvados”.
Confessaram e comungaram. Das demais penitências públicas, “houve commutação
pecuniaria, como me fizeram ver pelo recibo do Escrivão Ecclesiastico”. (Ou
seja, Manuel Ferreira “morreu” com 3.200 réis...). E, finalmente, ambos “jejuarão
seus jejuns pelas Almas como me certificarão”.
Trocando
em miúdos, a verdade é que o “vadio” Joaquim Pedro, além de “desonestar” a
esperançosa Brígida, ainda levou ao altar a experiente Emerenciana. E Manuel
Ferreira, além de tirar a “pureza” de Anna Bebianna, ainda acabou nos braços de
Maria Teresa, sob as bênçãos do matrimônio.
São dois
interessantes registros de como eram as moralidades sociais e sexuais em nossa
região nos tempos de antanho.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br