Misticismo e
credulidade sempre andaram de mãos dadas. Aqui, no Vale do Ribeira, em remotas
eras, e mesmo nos dias atuais, pessoas menos esclarecidas sempre foram vítimas
de feiticeiros, curandeiros e outros enganadores da boa-fé alheia.
Detenhamo-nos hoje nos vivaldinos do passado, do século XIX, para sermos mais
exatos.
Feitiçaria e curandeirismo no Vale do Ribeira |
O historiador
anglo-brasileiro Ernesto Guilherme Young (1850-1914) resgatou um termo de
vereança da Câmara de Iguape, datado de 11 de julho de 1833, onde os vereadores
se mostraram alarmados com a presença de dois “curandeiros de feitiços”
aparecidos na vila. Vamos à história.
Por volta de 1831,
apareceram em Iguape dois curandeiros, “faltos de conhecimento”, pois “a
natureza nem ao menos lhes confiou a mais pequena luz de civilização”. A
Câmara se indignou, pois eles apregoavam que “curavam feitiços”,
palavras que envolviam “sentido diabólico”, já que atingiam a “classe
acreditadora de tudo”. Em pouco tempo, cada um estabeleceu a sua “casa de
hospedagem”, que passaram a ser muito frequentadas por “miseráveis que
acreditam em tão horroroso nome”.
Um desses
curandeiros tinha de nome Henriques e se estabelecera na barra do Juquiá, no
atual município de mesmo nome. O segundo era um escravo de nome Ignácio,
pertencente a Luiz Francisco de Paula, e havia se estabelecido “no bairro da
Enseada ou Icapara”, em Iguape.
O tal Henriques
logo foi desacreditado, pois causou desgraça a uma família, “a qual pôs em
estado de malquerença geral”. O juiz de paz foi chamado, mas não chegou a
comparecer, pois a parte atingida desistiu de continuar com o processo. O
curandeiro, porém, “cessou da maldita lida de enganar os crédulos”.
O
escravo Ignácio, no entanto, continuou com as suas práticas de curandeirismo.
Ignácio era “mais bruto, mais bárbaro” e ainda tinha autorização de seu
senhor. Estabelecera-se, a princípio, na “Enseada
ou Icapara”, mudando-se depois para a Barra do Ribeira. Mas, temendo a
autoridade policial deste distrito, resolveu que “só no Rio de Una fazia sua
felicidade”, onde veio a se estabelecer.
A
denúncia à Câmara foi feita pelo comendador Luiz Álvares da Silva (1808-1883),
que o conhecia há mais de 15 anos e nunca constou “que fosse mais do que um
cavador de terra”, ou seja, “um indivíduo sem arte, sem luzes”, que
nem ao menos conhecia “a virtude simples de uma erva”.
Como
a vadiação é “mãe de todos os vícios”, o escravo espalhou que era “curador
de feitiços”. Então, fez sua residência na Barra do Ribeira, onde recebeu “uma
grande porção de infelizes de quem se fez acreditar como curador, derramando a
discórdia entre famílias a quem ele indigitava como fatores de tais males,
pondo-as assim em um total abandono e desprezo entre seus vizinhos sem outro
socorro mais que as lágrimas”.
O
charlatão profanava até mesmo a religião, pois pegava os rosários dos doentes,
metia-os em água fervente, utilizando-se dessa água para suas curas, “fazendo
as operações que aqui se não podem referir”. Mas, acossado pelas
autoridades da vila, passou ao distrito de Una, onde “tem praticado as
maiores barbaridades sem que o Juiz de Paz d´aquele Distrito desperte para
reprimir.”
A
Câmara deliberou que se oficiasse aos juízes de paz do rio de Una, da Vila de
Iguape e da Freguesia de Juquiá para que indagassem sobre a existência desses “curandeiros
de feitiços” em seus distritos; se fossem libertos, e se intitulassem
curadores de feitiços, deveriam ser processados na forma da lei. Já se fossem
escravos, o juiz de paz deveria mandar vir à sua presença, “debaixo de vara”,
o seu senhor e o constrangesse a assinar termo de jamais consentir que o seu
escravo saísse de sua casa, e nem dentro dela fizesse “aplicação de remédio
algum”, obrigando-se ainda “a desdizer-se que não é curador de feitiço”.
O
tal Ignácio deve ter sido mesmo impedido de suas “práticas diabólicas”, pois, nos demais documentos da Câmara
coligidos por Young, não se volta mais ao assunto.
Pretendemos,
neste estudo, tão somente lançar alguma luz sobre essas práticas consideradas
como charlatanismo, dentro do contexto da mentalidade da época, sem entrarmos
em juízos de valores.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br