Pelas leituras de velhos documentos carcomidos pelas traças, arquivados nos cartórios da região, muitas informações históricas importantes podem ser coligidas, principalmente no tocante às relações sociais e à moralidade sexual, em épocas recuadas.
Gravura, de Rugendas |
Relacionamentos não oficializados
(leia-se concubinato) entre homens e mulheres eram frequentes. Muitos homens,
alguns de projeção, tinham mulheres como “amigas”, podendo viver com elas sob o
mesmo teto, ou apenas visitando-as de quando em quando. Há indícios de que
muitos mantinham “amigas”, que também moravam nas vilas, e acredita-se que
essas relações fossem do conhecimento de todos.
Encontramos algumas “escrituras
de perfilhação”, nas quais se percebe o arrependimento ou a necessidade de
regularizar a situação dos filhos bastardos. Pelo menos três dessas escrituras
contam do “Livro de Registro de Escripturas” do Cartório de Iguape (1854-1856).
Com data de 16 de junho de 1855,
Francisco Antônio Pereira reconheceu que, quando “no estado de solteiro”,
teve “amisade illicita” com Carolina Maria d´Aguiar, “mulher
solteira”, e que “continuava a ter, tendo ella já concebido e dado a luz
os seguintes filhos – Hermelinda, Maria, Elisabeth, Francisco, Augusto,
Guilhermina, Rita e Antonio, recém-nascido, os quais todos havia alimentado,
tratado e aceito como seus filhos que são e o continuava a haver.” Mesmo
reconhecendo os filhos, não consta na escritura se Francisco pretendia se casar
com Catarina, ou mesmo se moravam juntos.
Até mesmo sacerdotes, vez por
outra, caiam em tentação, como se comprova pela “escritura de perfilhação”, lavrada em 6 de fevereiro de 1856, na
qual o padre Joaquim Manoel Alves Carneiro admite que “por fragilidade
humana, teve amisade illicita com Modesta Maria das Neves e dessa amisade
resultou ter com ella um filho de nome João, e de idade seis annos mais ou
menos”.
O padre Joaquim Manoel reconheceu
que “a dita Modesta era solteira e sem impedimento” para o casamento e
que, “bem convencido por todas as circunstancias, que essa criança é seo
filho, vem pela presente reconhecê-lo como tal, para gozar, e produsir, todos
os effeitos legaes, estabelecidos pelas leis, sendo um delles o direito com que
fica de herdar seus bens, como herdeiro universal que fica sendo.” É curioso
que as testemunhas foram os padres Antônio Carneiro da Silva Braga e Scipião
Ferreira Goulart Junqueira.
Alguns homens, já no leito de
morte, talvez por que se lhe pesasse a consciência, chamavam às pressas o
tabelião para reconhecer filhos bastardos, produtos de uniões consideradas
ilícitas. Foi o que aconteceu com Joaquim Pupo da Rocha, que “tendo tido
amisade illicita com Francisca Maria Rodrigues, mulher solteira, já fallecida,
e sem impedimento para com ella casar, teve três filhos de nomes – Virgilio,
que se acha no Rio de Janeiro, Hercílio, em Santos, e Eustachio, nesta cidade,
e portanto, para os effeitos legaes, os reconheceu como seus filhos legítimos,
e seus universais herdeiros.”
É interessante que Joaquim
declarou que a casa onde morava, na travessa do Largo de São Francisco (atual
Praça de São Benedito), em Iguape, não era sua, mas de seus filhos, visto que
pertencia à falecida mãe deles. Joaquim Pupo se encontrava acamado, talvez em
seus últimos momentos – mas ainda lúcido –, pois o tabelião foi chamado “pelas
dez horas da noute” e portanto “não houve sello por causa da hora em que
esta é passada”. Entre as testemunhas, constou o padre Scipiao Ferreira
Goulart Junqueira.
Martim Francisco Ribeiro de Andrada, irmão de José
Bonifácio, o Patriarca da Independência, passando pelo Vale do Ribeira em 1805,
deixou as suas impressões registradas no “Diário de Uma Viagem Mineralógica
pela Província de São Paulo”. Martim Francisco destaca a moralidade dos
habitantes da cidade, que contrastava com a luxúria, adultério e transgressões
sexuais dos que habitavam os sítios espalhados pelo rio Ribeira. Eis o trecho:
“Agradando-me em demasia os costumes dos habitantes da
Vila [de Iguape], os dos da
Ribeira me deixaram assaz magoado; uma luxúria desenfreada entre as mulheres e
homens, e entre parentes, uma frequência de adultérios, pode por acaso
atribuir-se ao estado próximo da natureza? Certamente que não, porque aqui
vemos reinar os veios das nações civilizadas; os viajantes que nos descrevem os
costumes das ilhas do mar do Sul, fazendo-nos ver uma igual tendência pelo
sacrifício de amor nas solteiras, nos pintam as casadas como modelos de fé
conjugal; ao menos se as casadas fossem sacrificadas pelos maridos como em
Esparta, para o bem publico! Mas estas ideias estão bem longe de semelhante
povo. Pobre humanidade! Quanto és respeitável pelos teus bons costumes, e
desprezível pela tua perversidade!”
Não pretendemos, neste estudo, depreciar ou julgar as
moralidades ribeirenses dos velhos tempos, mas apenas resgatar algumas
passagens da vida cotidiana de nossa região, em épocas remotas.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br