O Bacharel de Cananeia, sem a menor sombra de dúvida, é a personagem mais misteriosa e controvertida de nossa história. Identificado pelo historiador anglo-brasileiro Ernesto Guilherme Young como Cosme Fernandes – cujo nome era precedido pelo título de “Bacharel Mestre” –, até hoje continuam a crescer os estudos e as conjeturas a seu respeito.
Há
algumas décadas, era geralmente aceito que o Bacharel teria vindo na expedição
de 1501, que tinha Américo Vespúcio como cosmógrafo. Teria sido deixado na Ilha
do Bom Abrigo em fevereiro de 1502, segundo Francisco Adolfo de Varnhagen. Uma
vez degredado nestes lados dos trópicos, acredita-se que o Bacharel tenha sido
o iniciador dos povoados de Cananeia, Iguape e São Vicente.
Mas
o que dizer da hipótese de o Bacharel ter chegado ao Brasil, não em 1502, mas
em 1498 ou 1499, antes mesmo do descobrimento oficial do Brasil? Essa polêmica hipótese
foi levantada pelo renomado historiador português Jaime Cortesão (1884-1960),
que viveu no Brasil entre os anos de 1940 a 1957, em seu livro “Descobrimentos Portugueses” (volume
III, páginas 717-723, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Portugal, 1990). Os
argumentos apresentados por Cortesão são bastante convincentes e talvez nos
levem a recuar a chegada do Bacharel antes mesmo de Cabral ter aportado por
aqui.
As
duas referências mais antigas ao Bacharel datam de 1527 e 1531. Referindo-se a
acontecimentos passados no ano de 1527, o piloto português Diogo Garcia
escreveu, em meados de 1530: “E aqui
fuímos a tomar refresco em San Vicente, que está em 20 grados e alli vive um
Bachiller y unos yernos suyos mucho tiempo ha que ha bien treinta años”. Já
em 1531, Pero Lopes de Souza escreveu no Diário
de Navegação da armada de Martim Afonso de Souza que o Bacharel “havia trinta anos que estava degredado
nessa terra”. Esses trinta anos, na opinião de Cortesão, seriam
aproximados.
Cortesão
encontrou um inventário, datado de 24 de abril de 1499, que cita um bacharel, degredado e letrado. Trata-se
do longo testamento de Álvaro de Caminha, capitão da ilha de São Tomé, redigido
poucos dias antes de sua morte. Falecendo Álvaro de Caminha, foi sucedido,
interinamente, no governo da ilha por seu primo Pedro Álvares de Caminha.
Cortesão também teve acesso a uma petição firmada por 65 degredados na ilha de
São Tomé que rogaram ao rei D. Manuel para que conservasse no governo da ilha o
primo de Álvaro de Caminha. Por esse documento, Cortesão concluiu que a ilha
era um verdadeiro “depósito” de degredados. Basta citar que em São Tomé viviam
cerca de 50 moradores livres, sem contar os escravos e judeus. É curioso notar
que os soldos de vários serventuários na ilha eram pagos na base de escravos, “verdadeira moeda corrente em S. Tomé”.
A
certa altura do inventário lê-se: “Mando
que seja tomado conta ao bacharel,
depois de ter recebido todo o de João Jorge, concertando o inventário pelas
vendas de suas cousas e tudo o que se achar, tiradas as despesas, seja feito em
dinheiro e para arrecadação levado à Casa da Mina para se dar a seus herdeiros.
E assim lhe dêem uma boa escrava moça, a qual serviu, e mereceu em certo tempo
que serviu de ouvidor, porque uma que tinha fica porque é velha e não lha dei
senão para o servir.”
Seguem
outros quatro casos semelhantes, referidos a Gonçalo Vaz, Fernande Alcácer,
João Álvares Sapateiro e Domingos Picanço, “com
a ordem de enviar para a Mina e pôr à disposição dos herdeiros os seus bens”.
Pela análise de Cortesão, nada indicava nesses casos que se tratavam de
indivíduos falecidos. De acordo com o historiador: “Parece depreender-se, pois, que todos eles se ausentaram da ilha, por
motivos desconhecidos, mas sem poderem levar os bens consigo.”
Os
bens dos colonos livres eram confiados a testamenteiros idôneos, que os faziam
entregar diretamente à família ou, em certos casos, depositados na cidade de
São Jorge da Mina, naquela época metrópole da expansão portuguesa no golfo da
Guiné, e onde ficavam à disposição dos herdeiros.
Cortesão
notou que a verba sobre o bacharel, “além
de mal redigida, supõe um conhecimento prévio comum ao testador e
testamenteiro, mas de forma alguma explícita no texto. Que o indivíduo era de
facto bacharel é de supor, pois ´serviu de ouvidor´, ´em certo tempo´; e que
pertencia ao número dos degredados, menos pode duvidar-se, pois é designado por
uma alcunha, isto é por forma degradativa, o que nunca sucederia a um letrado,
se não tivesse baixado por sanção de lei na hierarquia social.”
Cortesão
concluiu que o bacharel estava vivo e que a ordem para vender os seus bens
mostrava que ele estava ausente da ilha. Para o historiador, tratava-se do
mesmo bacharel encontrado por Diogo Garcia em São Vicente e por Martim Afonso
de Souza em Cananeia: “(...) dum e doutro
lado um degredado; nomeado por uma alcunha, única no gênero, acrescentando-se
que um desaparece de S. Tomé em época muito próxima daquela em que o outro
surge no Brasil, o que torna mais improvável a duplicidade de homonímia.”
Quem
poderia ter levado o bacharel ao Brasil? Cortesão acreditava que poderia ter sido
“um” Bartolomeu Dias (“dizemos um, pois
está averiguado que existiu na mesma época outro navegante do mesmo nome”). Esse Bartolomeu Dias esteve na ilha de
São Tomé em fins de 1498 e dali partiu em seguida, conforme se comprova de uma
carta de Pedro Álvares de Caminha, governador interino da ilha, dirigida a D.
Manuel em 30 de julho de 1499.
Pela
leitura do testamento de Álvaro de Caminha, Cortesão comprovou que este tinha
algum conhecimento com esse Bartolomeu Dias, pois no testamento é referido que dois
colonos quiseram regressar a Portugal, passado apenas meio ano de serviço na
ilha, “para o qual lhes dei licença e se
deixaram de ir, foi [por]que
Bartolomeu Dias os não quis levar.”
Cortesão
acreditava que esse Bartolomeu Dias poderia “ter
chegado a Cananeia ou ponto próximo da costa do Brasil em fins de 1498 ou
começos do ano seguinte”, concluindo
que o Bacharel de São Tomé era o
mesmo Bacharel de Cananeia, e que Bartolomeu Dias (que o historiador suponha fosse
o descobridor do Cabo da Boa Esperança) realizou “entre os fins de 1498 ou os começos do ano seguinte, uma viagem de
reconhecimento tordesilhano nas regiões austrais do Brasil, onde aquele
degredado foi deixado como um padrão vivo da soberania portuguesa.”
Para
Cortesão, não havia dúvidas que a ilha de São Tomé foi, “na última década do século XV, e por indústria de D. João II, um
centro penal de degredados e, por consequência, uma estação experimental e de
adaptação aos trópicos.”
É
de se lamentar que o historiador não tenha envidado novas pesquisas sobre o
Bacharel de São Tomé/Cananeia, já que ele sempre teve acesso a importantíssimos
arquivos portugueses. Fica, portanto, a pergunta no ar: o Bacharel de Cananeia
teria chegado por estas plagas antes mesmo de Pedro Álvares Cabral, o “descobridor
oficial” da Ilha de Vera Cruz?
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br