(Ficção
Histórica)
Morro das Avencas, Freguesia de
Sant´Anna de Iporanga, distrito de Santo Antônio das Minas de Apiaí.
O sol estava abrasador naquele dia. Tião
suava por todos os poros. O corpanzil musculoso, protegido por um calção de
algodão cru, parecia refletir a luz do sol e lhe conferia um aspecto agigantado.
Havia semanas que garimpava no morro, perdido naquela solidão que, conquanto
lhe angustiasse o espírito, dava-lhe as forças necessárias para prosseguir na
cata do ouro.
Vez ou outra, Tião dirigia o olhar distante
na direção de um ponto incerto no meio da mata fechada. Ele não olhava para
algo. Pensava, sim, em Marcolina. Morena vistosa, bonita, o sorriso no qual os
dentes muitos brancos, muitos aparelhados, semelhavam a pérolas engastadas, os
olhos negros e brilhantes que nem duas jabuticabas colhidas no pé.
Tião conhecera Marcolina logo que
chegara à fazenda de sinhô. Viagem longa, sofrida, diretamente do mercado do
Valongo, no Rio de Janeiro, para a Freguesia de Sant´Anna de Iporanga.
Quando Tibúrcio, o capataz, atirou-o
dentro da senzala escura e infecta feito um cão sarnento, assim que os seus
olhos se acostumaram com o negrume do lugar, Tião percebeu o vulto daquela morena
bonita, o sorriso que parecia uma tocha acesa. Era Marcolina. Amor à primeira
vista. E amor logo correspondido. Começaram a se encontrar às escondidas. O
capataz, homem bruto, estava de olho em Marcolina. Os outros escravos também
não disfarçavam o interesse por ela. Moça bonita, disputada.
Apesar de todas as precauções, o namoro
chegou aos ouvidos de sinhô. O capataz trouxe Tião à presença do fazendeiro.
Sentado em sua cadeira de madeira de lei, trazida do Reino, sinhô parecia um
rei, ali, na sala principal da casa-grande. Desde que mandara buscar mais
escravos no Rio de Janeiro, sinhô notara a robustez de Tião. Forte, parrudo, as
patacas das pernas grossas, trabalhador, próprio para as catas do ouro.
– Sinhô qué falá com ocê, infistulado!
Vamos sem mais demora, se não quiser ter o lombo lavrado de chibatadas...
Vamos!
A distância entre a senzala e a
casa-grande era de uns duzentos metros. Tião seguia curioso. Não se lembrava de
ter relaxado na lida. Nunca ficara no tronco, apesar de notar a antipatia do
capataz por sua pessoa.
– É porque o meu Tião é trabaiadô –
dizia-lhe Marcolina. – Esse Tibúrcio fica me acercando, me ameaçando. Ele sabe
de nóis, daí fica com inveja de meu Tião...
Devia ser isso. Tibúrcio chegou aos
ouvidos de sinhô com a história dos dois. Agora, sinhô devia estar fulo da vida.
Queria escravo para suar na lida e não para vadiar com escravas que também
deviam estar na lida. Sinhô tinha o coração duro que nem pedra, Tião sabia. Mas
todo cristão também tem que ter um pouco de misericórdia. Tião pediria
autorização para se casar com Marcolina. Sinhô e sinhá seriam os padrinhos.
Sinhá era boa, convenceria sinhô.
– Então, seu safado, ao invés de lidar
na roça, fica de namorico com a Marcolina... – a voz de sinhô era seca, metia
medo. – Você está querendo é levar umas boas chibatadas no meio do lombo...
Tibúrcio, prepare o tronco!
– Sinhô deixa eu casá com Marcolina...
Tião vai trabaiá dobrado... Sinhô mais sinhá fica sendo padrinho de nóis...
Sinhô deu um sorriso cavernoso, os olhos
irradiavam um brilho estranho.
– Eu te dou a Marcolina, seu folgado...
E até eu mais sinhá poderemos ser padrinhos...
Tião engoliu em seco. A gente se engana
com as pessoas. Sinhô era homem bom. Marcolina seria sua. Os dois seriam
felizes, teriam muitos filhinhos, todos abençoados pela Virgem do Rosário.
– Quero o peso da Marcolina em ouro! –
exigiu sinhô.
***
Morro das Avencas. Morro do ouro. Ouro
encoberto, do qual só Tião sabia o paradeiro.
Dias, semanas, meses se passaram. Tião
catava o ouro, ia enchendo os alforjes. Quando ajuntou o combinado, amarrou tudo
no lombo da mula magra e cansada. Em um dia de viagem chegaria à casa-grande.
Sinhô, homem sisudo, até esboçaria um sorriso na cara azeda.
– Vamos, homem! – sinhô certamente lhe
diria – Dá-me cá o meu ouro e abrace a sua futura esposa!...
Tião seguia feliz pela trilha em direção
à fazenda. Podia imaginar a felicidade de Marcolina. A sua morena, bonita, jeitosa.
Sinhô até permitiria que eles morassem fora da senzala, numa casinha de taipa
de pilão, coberta por palha de juçara, que Tião levantaria às margens do rio
Iporanga.
Sim, sinhô tinha confiança nele. Sabia
que ele encontraria ouro. Sinhô seria louco de mandá-lo catar ouro, sozinho, no
meio do sertão, se não lhe tivesse confiança? Escravo fugido, não: Tião tinha a
confiança de sinhô.
Ao se aproximar da fazenda, Tião fez
estancar a sua mula. Olhou ao longe. Perto da senzala, discerniu o vulto de
Marcolina, que acenava para ele, toda feliz da vida. Até o sorriso da morena ele
conseguiu distinguir, apesar da distância.
Mas ele não foi em frente. Olhou para os
alforjes: o ouro fora conseguido com o seu suor, era seu, não de sinhô. Puxou
as rédeas e fez a mula mudar de direção. Tião mudara também de ideia. Seguiria
para Iguape. Lá, pegaria um barco para o Rio de Janeiro. Na Corte, compraria a
sua liberdade e, instalado num palacete assobradado, cercado por serviçais, ao
lado da sua Marcolina, cuja liberdade ele também compraria, viveria como um
sinhô.
(Este texto de ficção
histórica é um capítulo do livro em elaboração “Os Mistérios do Vale - Crônicas
Ribeirenses”, de Roberto Fortes).
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e
sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial
deste texto com a devida citação dos créditos).