Folheando os jornais e almanaques
editados no país durante o século XIX, verificamos que as “trovinhas” foram uma
verdadeira coqueluche literária. Até mesmo os poetas considerados “maiores” não
deixaram de passar ao papel algumas trovas cheias de encanto e agudeza.
Fandango Caiçara. Pintura de Jhon Bermond. |
Dias desses, manuseando uma coleção de
antigo semanário que circulou no Vale do Ribeira em fins do século XIX, encontramos
muitas e diversas quadrinhas (em heptassílabos, ou redondilha maior), todas
pitorescas, que merecem ser resgatadas e colocadas à apreciação do leitor.
Algumas trovinhas possuem mesmo um valor
sociológico, já que nos dão uma ideia de manifestações culturais da época, e
mesmo sobre o cotidiano na zona rural. Como esta, que fala de um fandango:
Bons dias, nhá
Bastiana,
Eu vim lhe
inconvidá
Pertendo nesta
somana
Lá no meu rancho
folgá.
Espero não há de
faltá
Com mecê a Graciana
Hei decerto
dançá,
Mecê vá, nhá
Bastiana!
Eu faltá ao seu
fandango!
Oxente! Que
grande asneira!
Conte comigo,
nhô Jango,
Dançarei a noute
inteira
Hei de ir logo
que ouça
A salva de tua
roqueira.
Ou esta, que deve ter sido cantada em
fandangos:
Tirana, tira
tirana
Tirana de
serra-abaixo
Mulher não casa
com sapo
Por não saber
qual é o macho.
(Nota:
Graciana e Tirana são modalidades de fandango).
Outras quadrinhas expressam o bom humor,
como esta, intitulada “Entre viúvas”:
Coitado do meu
marido,
Pobre Silvestre
da Mota,
Ir tão cedo à
sepultura.
– De que morreu?
– Foi da gota.
O meu também
morreu disso
E ainda dor me
rezinga.
Quando expirou
disse o médico...
– O que disse?
– Foi da pinga!
A sogra, desde o princípio dos tempos (tirante
Adão, que não teve uma...), sempre foi motivo de zombaria, ou execração. Senão
vejamos:
De uma costela
de Adão,
Para lhe ser
companheira,
Fez o bom Deus a
mulher;
Mas a sorte
trapaceira,
Que para o
homem, maldição,
Só não faz o que
não quer,
Inventou criar
um mal:
Fez a sogra, não
lhe gabo,
Da costela do
diabo,
Pra discórdia do
casal.
Os dogmas da Igreja Romana não deixavam
de ser zombeteiramente alfinetados, como nestes versinhos, intitulados “Enterro do Bacalhau”:
Já basta de
penitência,
De tanto peixe
comer,
Venha a carne, o
bom toucinho
E o champagne a
ferver.
Folguemos; haja
alegria
No banquete ou
no sarau,
E depois na
lauta ceia
Inda uma vez –
bacalhau.
Outras destacavam o valor da humildade e
da parcimônia, como o “Pão Nosso”:
Por que razão,
padre mestre,
Na oração
quotidiana,
Se pede pão por
um dia
Em vez de ser
por semana?
Criança, diz o
prelado,
Homem de senso
maduro,
Pedindo por mais
de um dia,
Teremos sempre
pão duro.
A finitude da existência humana pode ser
notada nesta singela trovinha:
Um dia o doutor
Raimundo
Um burro morto
encontrando
Passou de largo,
exclamando:
– Não somos nada
no mundo.
Enquanto esta outra compara a natureza
ao caráter humano:
Até a lenha do
mato
Tem diversa
condição.
Uma serve para
santos
E de outra
faz-se carvão.
Estas duas bem podem ser lidas hoje com
incrível atualidade:
Nesta vida de
trapaça,
Nesta vida de
ilusão,
Quem nada furta
é ladrão,
Quem muito furta
é barão.
Se na política
vida
Depressa quereis
subir,
Segui somente o
partido:
Furtar, mentir,
repartir.
O amor era o tema preferido dos
trovadores, principalmente as desventuras ou as perfídias d´amor. Vejamos
algumas dessas trovinhas:
Isto é sabido de
todos:
Amor há de ser
só um.
A mulher que a
dois atende
Não tem amor a
nenhum.
Coração que ama
a dous
Também pode amar
a três
Amando de um em
um,
Cada um por sua
vez.
Amor de moça tem
fogo
Amor de velha,
geada;
Vale o primeiro
um tesouro,
O outro não vale
nada.
Se teu bem está
chorando,
Couro, couro,
até moer.
Qu´ela está mais
é sentindo
Enganar-te não
poder.
Se teu bem está
sorrindo,
Um conselho aqui
te dou:
Couro, couro,
sempre couro
Que já ela te
enganou.
Por onde passas
eu vejo
Mil corações em
pedaços,
Porque é peçonha
teu beijo,
E são serpentes
teus braços.
Fui soldado,
sentei praça
No regimento do
amor;
Como sentei por
meu gosto,
Não posso ser
desertor.
Menina, teu pai
não quer
Que eu converse
com você:
Bote-lhe areia
nos olhos
Que homem cego
não vê.
Suspiros que
saem do peito
De quem padece a
paixão,
Não podem ser
mentirosos;
São suspiros do
coração.
Em outra ocasião traremos mais
quadrinhas pitorescas para a apreciação do caro leitor.
ROBERTO FORTES,
historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico
e Geográfico de São Paulo. E-mail:
robertofortes@uol.com.br
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