A partir da década de 1830, um gênero literário passou a merecer a atenção e a preferência dos leitores de jornais diários: o folhetim. Surgido, como não poderia ter sido diferente, na França, o “feuilleton” foi o nome dado aos romances publicados, diariamente, em rodapés de jornais. De Paris, logo ganhou o mundo, tornando-se uma febre em todos os quadrantes civilizados.
Um dos expoentes do folhetim foi o escritor francês Eugène Sue (1804-1857), considerado um dos mais importantes literatos de seu tempo. Sua obra mais destacada – “Os Mistérios de Paris” – foi publicada, em rodapés diários, no “Journal de Dèbats”, entre 19 de junho de 1842 e 15 de outubro de 1843. Foi um sucesso estrondoso. As desventuras da infeliz Flor-de-Maria – também chamada de “A Cantadeira”, por causa de sua bela voz – conquistou leitores em toda a Europa, e o romance não demorou a ser publicado, aqui no Brasil, no conceituado “Jornal do Commercio”, do Rio de Janeiro, entre 1º de setembro de 1844 a 20 de janeiro de 1845. A peça baseada no livro chegou a ser encenada, nestes lados dos trópicos, em 1850.
Já nas primeiras páginas do romance, o leitor fica perturbado pela maneira crua como o autor descreve os submundos de Paris, expondo, com todas as veias abertas, as vidas de seus miseráveis habitantes. Vemos surgir, diante de nossos olhos ávidos, uma miríade de personagens colocadas à margem pela aristocracia decadente e pela burguesia ascendente de Paris, na década de 1830.
“A Cantadeira”, na verdade, é uma pobre menina rica. Filha bastarda de um príncipe alemão com uma duquesa inglesa, foi entregue pela mãe, ainda bebê, a uma mulher ardilosa, conhecia como “A Torta”, sem dúvida uma das personagens mais detestáveis de toda a história da literatura universal. Basta dizer que “A Torta” explorava a pobre Flor-de-Maria, obrigando-a a vender quitutes numa ponte de Paris. A pobrezinha mal se alimentava e passava todo o dia vendendo os petiscos, e coitada dela se não conseguisse vender a sua quota diária: era desumanamente castigada pela “Torta”.
Um dia, dominada pela fome lancinante, a desditosa Flor-de-Maria cometeu o deslize de comer um dos quitutes, no que foi vista pela “Torta”. Ao chegarem em casa, a maligna mulher pegou de uma tenaz e, diabolicamente, extraiu à força um dos dentes da menina. Flor-de_Maria consegue fugir da “Torta” e passa a viver nos submundos de Paris, convivendo com a ralé parisiense, conservando-se, no entanto, pura e casta.
Durante todo o decorrer do romance, a “Torta” será uma tormenta constante na vida da infeliz menina rica. No final, encontrada e reconhecida por seu pai, Flor-de-Maria, mesmo vivendo num luxuoso palácio, não consegue ser feliz, pois seu passado a deixa sempre triste e reflexiva. Entre casar-se com um príncipe e entregar-se a Deus, Flor-de-Maria opta por entrar num convento. Mas nem mesmo a vida monástica, nem as orações diárias, trazem alento ao seu espírito infeliz. Coroando a infelicidade de sua existência, ainda mais premida pela vida rude do convento, Flor-de-Maria vem a falecer, triste, solitária, e eternamente apegada ao seu passado marginal.
O romance “Os Mistérios de Paris” serviu de inspiração para “Os Miseráveis”, de Victor Hugo (1802-1885). E, segundo alguns estudiosos, teria acendido o estopim do movimento popular que culminaria na Revolução de 1848. Afinal, Karl Marx (1818-1883)era um apaixonado leitor de Eugène Sue...
O livro arregimentou adeptos por toda a parte, inclusive no Brasil. Claramente inspirada nos “Mistérios de Paris”, o escritor Aluísio de Azevedo (1857-1913) publicou, em 1882, “Os Mistérios da Tijuca”, originalmente em rodapé de jornal. Já no século XX, o escritor Afonso Schimidt (1890-1964), grande amigo do Vale do Ribeira, publicou, em 1955, o livro “Mistérios de São Paulo”.
O que poucos sabem é que o italiano, depois naturalizado brasileiro, César Roncaglia, falecido em 1900, encetou a publicação de um folhetim, intitulado – veja só o leitor! – “Os Mistérios de Iguape”, uma “novela de costumes em relação com os princípios da maçonaria”. Essa história começou a ser publicada no semanário “Commercio de Iguape”, entre janeiro e março de 1898, e chegou a pelo menos seis capítulos, após o que, inexplicavelmente, a sua publicação foi interrompida.
ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. E-mail: robertofortes@uol.com.br
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