Ao ser publicado em 1857, “Madame Bovary” escandalizou a sociedade
parisiense da época. Seu autor, Gustave Flaubert (1821-1880), pouco antes
vivera um romance adúltero tumultuado, que resultou no suicídio de sua amante e
lhe inspirou o livro. A obra foi considerada imoral e Flaubert levado a
julgamento. Durante o interrogatório, não se deixou de notar a incrível
veracidade da personagem Emma Bovary e perguntaram ao autor quem teria servido
de modelo, ao que ele, bovaristicamente, respondeu: "Emma Bovary c´est
moi!" (Emma Bovary sou eu!).
Gustave Flaubert, autor de "Madame Bovary". |
O adultério na literatura sempre
fez sucesso. “Madame Bovary” é
o mais importante romance francês e, no mesmo nível, temos “Dom Casmurro”, aqui no Brasil (apesar de
muitos acreditarem que Capitu não traiu Bentinho, enquanto outros garantem que
a traição só existiu na cabeça de Bentinho). A história da insatisfeita Emma
Bovary ainda hoje provoca no leitor certo constrangimento, apesar de passado
quase século e meio. Poucos deixam de sentir compaixão pelo pacato Charles
Bovary, dedicado médico provinciano, cujo estilo sistemático de vida não
combina nem um pouco com a inquietação de sua esposa. Usando como escudo a
complexa personalidade de Emma Bovary (considerada uma das mais intricadas
personagens da literatura universal), Flaubert escreveu um autêntico manifesto
contra a moral burguesa de seu tempo, desnudando-a em toda sua frivolidade,
preconceito e falsidade. Emma Bovary, sufocada por toda essa repressão, vive um
fulminante amor extraconjugal, que a leva à morte.
Flaubert sempre foi um homem
inquieto. Adolescente, apaixonou-se perdidamente por uma mulher casada, quinze
anos mais velha. Esse amor proibido o acompanhou pelo resto da vida. Talvez por
isso tenha passado seus últimos trinta anos recluso num sítio, onde se dedicou
inteiramente à literatura, legando ao mundo obras refinadíssimas, como “Salambô”, “Educação Sentimental”, “A
Tentação de Santo Antão”, entre outras.
Seu perfeccionismo, às vezes,
pode parecer um pouco exagerado. De tão cuidadoso que era na escolha das
palavras, ficava durante dias à procura de um único adjetivo que tornasse
perfeito o texto que estava a escrever. Seu senso crítico e sua obsessão
chegavam a tanto que muitas vezes demorava vários dias para produzir apenas uma
página. Conhecendo essa faceta de sua personalidade, o leitor não estranhará
que, para escrever “Madame Bovary”,
Flaubert tenha levado nada menos do que sete anos!
Como ele mesmo afirmou, Madame
Bovary, era, realmente, o próprio Flaubert. Essa semelhança gritante
autor-personagem levou o filósofo Jules de Gautier a criar o termo “bovarismo”, hoje bastante comum em todo
o mundo e que serve para indicar a tendência de certos escritores para
conferirem a si mesmos uma personalidade ou condição fictícia e desempenharem
um papel fora da realidade. O bovarismo reflete a angústia de um temperamento
romântico que sofre com as limitações impostas pela sociedade. Num sentido mais
amplo, seriam as ilusões que os homens e os povos alimentam a respeito de si
próprios.
Verdadeiro divisor das águas dentro da literatura
universal, Flaubert é considerado o autor que melhor soube trabalhar seus
livros. Escreveu pouco, mas só escreveu obras-primas, que até hoje não perderam
nem um pouco de sua força original. Em virtude de seu excessivo apego à forma,
Flaubert foi um torturado de sua arte. Sempre obcecado pelo culto do belo,
sacrificou toda a sua vida em função da literatura. Anatole France, bem
propriamente, escreveu que é preciso admirar e venerar Flaubert, pois, com o
seu trabalho obstinado e pela adoração do belo, conseguiu retirar de seu
espírito o que ele tinha de pesado e confuso, legando à humanidade uma obra
monumental.
ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do
livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de
centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial
deste texto com a devida citação dos créditos).
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