Não passava de um alfarricoque. Alheado, aproximou-se do alfeire. Deteu-se diante do alfaque. Tirou do alforje alféloa para deleitar-se. Apeou do alfario. Cansado, deitou-se no solo alfombrado. Ao depois, adentrou na alfurja, onde assustou-se com a algaravia. A noite estava álgida. Alfim, decidiu ir-se.
Não,
leitor, você não está a ler numa língua estranha. É português legítimo. São
palavras quase todas de origem árabe. Vou tentar “traduzir” para o português do
dia-a-dia:
Não
passava de um joão-ninguém. Distraído, aproximou-se do curral de porcos.
Deteu-se diante do banco de areia. Tirou, da bolsa, doce para deleitar-se.
Apeou do cavalo. Cansado, deitou-se no solo atapetado de relva. Depois,
adentrou no pátio interno, onde assustou-se com a linguagem confusa. A noite
estava muito fria. Por fim, decidiu ir-se.
A
propósito, o nome de nossa coluna também vem do árabe: Al-Fãrãbi, que, segundo mestre Aurélio, quer dizer: “livro antigo ou velho e de pouco préstimo ou
valioso por ser antigo.” Escolhi esse nome porque muitas vezes aqui publico
velhos escritos que há anos estavam guardados no baú, cobertos pela pátina do
tempo...
A
última flor do Lácio, inculta e bela, tem mesmo dessas coisas. Dizem os poetas
que é a mais bela das línguas românicas. Também pudera: foi na lusitana língua
que Camões, Machado, Eça, Pessoa, Drummond e tantos outros escreveram suas
obras magistrais, hoje partes integrantes (e obrigatórias) da literatura
universal.
A língua portuguesa se
presta a uma infinidade de construções verbais, nominais, literárias enfim. Não
é uma língua seca (porém prática) como o inglês. É uma língua caliente, como
bem demonstra sua origem ibérica, latina. Não é sem razão que as principais
obras da literatura universal são escritas em latim ou línguas neolatinas. Os
autores são inumeráveis: Virgílio, Cícero, Ovídio, Dante, Cervantes, Petrarca,
Baudelaire, Hugo, Dumas, Zola, Anatole, Gide, Proust, ícones das letras
mundiais; e, mais recentes, Camus, Sartre, Garcia Lorca, Borges, Neruda, Amado,
Rosa, Garcia Marques, Calvino, Saramago... Tantos que teria que continuar na próxima
crônica...
Apesar
de menosprezada nas telenovelas e nas redes sociais, a língua portuguesa ainda
se mantém firme e forte. A despeito dos anglicismos e outros estrangeirismos
que tomaram conta do falar nacional, a língua portuguesa ainda dá mostras que
tão cedo não desaparecerá. Apesar das gírias e dos neologismos que dia a dia
são criados, o português ainda conserva toda a sua elegância de língua culta e
universal. Afinal, mais de duzentos e sessenta milhões de pessoas ao redor do
globo falam o pujante idioma de Camões, artífice-mor da nossa língua
portuguesa.
Cantemos, pois, como fez
Camões, as armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por
mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da Taprobana!
***
Não poderia encerrar esta
modesta crônica sem publicar o soneto “Língua
Portuguesa”, do magistral Olavo Bilac (1865-1918):
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amote assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. E-mail: robertofortes@uol.com.br
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