Francisca Júlia, por volta de 1895. |
A INFÂNCIA
EM XIRIRICA
Francisca Júlia na maturidade. |
A ESTREIA LITERÁRIA
Estátua da Musa Impassível, na Pinacoteca |
Francisca
Júlia, de acordo com algumas fontes, começou a escrever poesias aos 14 anos, mas
só começaria a publicar aos 20 anos. Sua estreia literária deu-se nas páginas
de “O Estado de S. Paulo”, na edição
do dia 6 de setembro de 1891, com o soneto “Quadro Incompleto”:
Foi um rico painel. Traço por traço,
Nele notava-se a paixão do artista.
Via-se, ao fundo, a tortuosa crista
De altas montanhas a beijar o espaço.
No centro, um rio, a distender o braço.
Selvas banhava em triunfal conquista.
Ao longo, dois amantes, pela lista
De um carreiro, seguiam, passo a passo,
Foi um rico painel. Uma obra finda
A primor, que, apesar de velha, ainda
Conservava das cores a frescura.
Hoje, porém, não é como era dantes:
Pois no ponto onde estavam os amantes,
Existe apenas uma nódoa escura.
Essa
poesia mereceu irônico comentário do polêmico padre Severiano de Rezende
(1871-1931), que aconselhou: “Minha
senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha.”
Felizmente, Francisca Júlia não levou a sério essa crítica mordaz; afinal,
conforme ela escreveu a Max Fleiuss, alguns anos mais tarde, o padre literato “nunca fez bons versos”; portanto, não
aceitou o “gentilíssimo conselho”.
A
partir de então, Francisca Júlia deu início a uma intensa colaboração com
jornais e revistas. No “Correio
Paulistano”, então o mais respeitável diário do país, publicou, em 6 de
novembro de 1892, o soneto “As Duas Irmãs”:
Vem a primeira e fala-lhe em segredo:
“Amiga, vê (nem sei como isto conte!)
Como correm as águas desta fonte:
Tal corre a vida, e acaba-se tão cedo!
Ama, pois!” A segunda, em cuja fronte
Brilha um raio de luz, murmura, a medo,
Apontando-lhe o chão: “Este é o degredo
Perpétuo e atroz do teu amor insonte.
Contudo, espera.” E somem-se a Esperança
E a Saudade. E ela fica, como douda,
A olhar o rastro dessas deusas belas...
E ela fica esperando-as. Cansa, cansa
De esperá-las assim a vida toda,
Sem jamais receber notícias delas!...
Nesse
jornal, colabora até 20 de julho de 1895, com o soneto “Pranto ao luar” (“Ao
luar”):
Ainda
no início de sua carreira, a Francisca Júlia tentou introduzir na poesia brasileira
a forma lied, bastante popular na
Alemanha, de temática simples e inspirada no amor. Em carta remetida a Valentim
Magalhães, editor da prestigiosa revista “A Semana”, do Rio de Janeiro,
Francisca Júlia comentou a respeito: “O lirismo profundo morre, pois, falto de condições sociais que o
impulsionem e fecundem. E aclimar o ´lied´ no Brasil, principalmente nesta
época, é uma utopia. Mas, para que não se diga que eu nunca tentei alguma
coisa, aí vai um. Mais tarde lhe hei de mandar outros da minguada coleção que
tenho”.
Francisca
Júlia logo passou a colaborar com os jornais mais importantes da época. Depois
da estréia em “O Estado de S. Paulo”,
onde publicou os seus primeiros sonetos, começou a colaborar assiduamente para
o “Correio Paulistano” e “Diário Popular”. Colaborou também com
revistas do Rio de Janeiro, entre elas, “O
Álbum”, de Arthur Azevedo e, especialmente, “A Semana”, de Max Fleiuss e Valentim Magalhães. Para a primeira
revista, publicou as poesias “Paisagem”, “Noturno” e “No boudoir”, respectivamente
nas edições de fevereiro, abril e junho de 1893.
“A SEMANA” E O “MITO” FRANCISCA JÚLIA
A Semana era uma das revistas mais conceituadas que então se
editava no Rio. Dirigida por Valentim Magalhães e Max Fleiuss, tinha como
redatores ilustres escritores da época: João Ribeiro, Araripe Júnior e Lúcio de
Mendonça. A estreia de Francisca Júlia, na edição de 9 de setembro de 1893, com
o soneto “Musa Impassível”, provocou grande alvoroço: os redatores não
acreditavam que uma mulher pudesse escrever versos tão perfeitos. Não foi sem
razão que João Ribeiro exclamou: “Isto
não é verso de mulher! Deve ser uma brincadeira do Raimundo Correa!...” (3)
Araripe
Júnior e Lúcio de Mendonça “riram-se e
confirmaram a suspeita de João Ribeiro”.
Mas logo chegaram outras poesias, “todas
revelando belíssimo talento, ficando então provado que se tratava duma
estreante de grande valor.”
Sobre
a estréia de Francisca Júlia nas páginas de “A Semana” escreveu Max Fleiuss: “Certa vez recebíamos na A Semana uns versos primorosos e assinados Francisca
Júlia da Silva. Tão perfeitos eram que
João Ribeiro considerou-os uma mistificação, chegando mesmo a atribuí-los a
Raimundo Correia. Todo o bonde concordou. Essa Francisca Júlia era um mito...”
Na
edição de 13 de janeiro de 1894, “A
Semana” publica o lied “D. Alda”,
um dos vários que a poetisa vinha compondo “à
imitação de Goethe”. Não existem informações de que Francisca Júlia lesse
em alemão; é mais provável que lesse Goethe na tradução francesa, em especial
as feitas por Henri Blaze. Juntamente com esse lied, Francisca Júlia encaminhou a seguinte carta a Max Fleiuss:
“Sr. Diretor da A Semana,
“Aí vai um lied. Sei de
mais que nestes tempos em que o espírito já se não compraz com o perfume
campesino, com o ingênuo lirismo da poesia antiga, tão singela e tocante na sua
simplicidade, mormente no Brasil, onde a poesia alemã nunca exerceu uma
influencia apreciável, os lieds que
tenho composto, à imitação dos de Goethe, vão passar despercebidos. O lied é a poesia popular da Alemanha. Inspirado
no amor, ora expansivo e alegre, ora terno e íntimo, tocado dessa melancolia
mórbida, desse vago e inefável langor a que os alemães deram o nome suave de
Sehnsucht, o lied é o espelho onde
refletem todas as tradições, todos os sonhos, toda a alma, enfim essencialmente
romântica, daquele povo. Henri Blaze, o exímio tradutor de Goethe, tentou
debalde aclimá-lo na França. Fialho de Almeida já escreveu com muito critério: ´Como
generalizar uma tal poesia, quando o espírito não tem mais o perfume da
adolescência e a frescura das idades primaveris?´ O lirismo profundo morre,
pois, falto de condições sociais que o impulsionem e fecundem.
E aclimar o lied no Brasil,
principalmente nesta época, é uma utopia. Mas, para que não se diga que eu
nunca tentei alguma coisa, aí vai um. Mais tarde lhe hei-de mandar outros da
minguada coleção que tenho.
Francisca Júlia da Silva”
João
Ribeiro, desconfiado dessa carta, exclamou: “Eu
respondo a esta imaginária poetisa”, e escreveu a pitoresca poesia
“Jazigo”, publicada na edição de 24 de março de 1894, assinando com o
pseudônimo de Maria de Azevedo:
Climas
das terras extraordinárias
De ares brancos e tiritantes,
Cheios de verdes araucárias
Crucificadas
Pelas estradas
Extraordinárias,
brancas, tiritantes.
Caia
a chuva, pois, tempestuosa
Risque em jaula toda a paisagem.
Eu
fico a desfolhar a rosa
Da tua boca
Mordendo, louca,
A
jaula tempestuosa da paisagem.
Oh
a Friagem! Oh as Misérias!
Oh os cristais desse banquete!
Iguais a vidro e mais etéreas
As neves soltas
Sobre recoltas
Pairam
brancas e frias de misérias.
Arfem
ofegantes pulmões d´aço
Dos lobos ávidos de sangue.
Que nosso amor – eterno laço
D´almas armadas –
Morra às dentadas
Do
sanguinoso lobo ávido em sangue.
E
que por sinal, extraordinárias
Semeiam cruzes tiritantes
Ao pé das verdes araucárias
Pelas estradas
Brancas, nevadas,
Extraordinárias,
brancas, tiritantes.
Observou
Max Fleiuss: “Mais tarde verificamos que
existia a poetisa e foi exatamente João Ribeiro quem lhe prefaciou o primeiro e
magistral livro – Mármores.” Em
outra carta Fleiuss, datada de 9 de abril de 1894, Francisca Júlia fala um
pouco mais de sua condição de poetisa, além de destacar a sua estreia e uma
crítica desfavorável do padre José Severiano de Rezende:
“Sr. Max Fleiuss,
"Devo à A Semana (e
creio que especialmente a V.) algum nome que tenho. Até há pouco tempo eu não
tinha provado, a não ser muito de leve, o sabor delicado de um elogio. Às
vezes, muito raramente, um cronista cá da terra [São Paulo] se lembrava de arriscar, com timidez,
algumas palavras de encômios. Quase sempre não passavam de ´poetisa esperançosa
se bem que pouco inspirada, mas sem pretensões artísticas...´ E eu devorava
essas palavras, com avidez, saboreando-as longamente. Quando publiquei a minha
primeira poesia, uma balada à antiga, um dos nossos poetas, Severiano de
Rezende, que, falemos a verdade, nunca fez bons versos, dedicou-me algumas
linhas pela imprensa, em que me aconselhava que não escrevesse mais versos, e
terminava assim, se me não falha a memória: ´Minha senhora, há ocupações mais
úteis, dedique-se aos trabalhos de agulha´. É inútil dizer que não aceitei o
gentilíssimo conselho... Depois tive ocasião de ler um artigo de Valentim
Magalhães em que se citavam, com profusão, nomes femininos. O meu passou em
branco. Fiquei triste. Foi essa a razão porque, acostumada a não me julgar
nada, mesmo entre os versejadores da última plana, sempre me conservei arredia
de todos os certames.
“E, entretanto, nestes últimos tempos, o
meu nome já é citado nas rodas literárias com certo respeito e deferência. A
quem o devo? Quero crer que à A
Semana e particularmente a V. Quanto aos lieds, que devi à A Semana, mais tarde mandarei. Temo porém, que se
torne desagradável a assiduidade da minha colaboração.”
Em
1894, o poeta Vítor Silva dedicou o soneto “Fogo Fátuo”, publicado em “A Semana”, “à primeira poetisa brasileira, D. Francisca Júlia da Silva”. O
soneto foi reproduzido no Correio
Paulistano de 6 de março de 1894. Segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos,
essa dedicatória “sensibilizou os
arraiais literários da Paulicéia”. Note-se
que Francisca Júlia ainda não publicara o seu primeiro livro, mas apenas cerca
de duas dezenas de poesias espalhadas pelas páginas de “O Estado de S. Paulo”, “Correio
Paulistano”, “Diário Popular”, “O Álbum” e “A Semana”.
"MÁRMORES": A CONSAGRAÇÃO
Em
princípios de 1895, aparece seu primeiro livro, “Mármores”, reunindo sonetos publicados em “A Semana” de 1893 até
aquele ano, obra custeada pelo editor Horácio Belfort Sabino. Já então
Francisca Júlia era uma poetisa bem conhecida. Prefaciado por João Ribeiro,
conceituado crítico da época, o livro causou sensação nas rodas culturais de
São Paulo e Rio de Janeiro. Francisca Júlia, no verdor dos seus 24 anos, realizava
o grande sonho de infância. Olavo Bilac, festejado poeta, numa crônica
emocionada, destacou:
“Em Francisca Júlia surpreendeu-me o
respeito da língua portuguesa, – não que ela transporte para a sua estrofe
brasileira a dura construção clássica: mas a língua doce de Camões, trabalhada
pela pena dessa meridional, – que
traz para a arte escrita todas as suas delicadezas de mulher, toda a sua
faceirice de moça, nada perde da sua pureza fidalga de linhas. O português de
Francisca Júlia é o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso
de novidade e frescura.” (2)
Encantado
com esse talento literário que emergia, João Ribeiro, prefaciador de Mármores, ombreou Francisca Júlia à
“trindade parnasiana”:
“Nem aqui, nem no sul nem no norte, onde
agora floresce uma escola literária, encontro um nome que se possa opor ao de
Francisca Júlia. Todos lhe são positivamente inferiores no estro, na composição
e fatura do verso, nenhum possui em tal grau o talento de reproduzir as belezas
clássicas com essa fria severidade de forma e de epítetos que Heredia e Leconte
deram o exemplo na literatura francesa.” (4)
João
Ribeiro não poupa elogios, recordando a estréia da poetisa em “A Semana”:
“Foi, pois, principalmente nas páginas
de ´A Semana´ que a reputação de Francisca Júlia da Silva se tornou durável,
válida e indestrutível. E quando ela vinha todos os sábados com o fulgor e a
pontualidade de um planeta, era logo cercada da admiração e do aplauso com que
todos nós a recebíamos. A sua poesia enérgica, vibrante, trazia a veemência de
sonoridades estranhas, nunca ouvidas, uma música nova que as cítaras banais do
nosso Olimpo nos haviam desacostumado.”
(5)
Tanto
confete lançado em torno de sua estreia literária parece não ter subido a
cabeça da jovem e já consagrada poetisa. Ao contrário, cada vez mais
incentivada por amigos de peso, dedica-se integralmente à atividade poética,
traduzindo para o português versos do poeta alemão Heine. A leitura dos
românticos alemães, principalmente Goethe e Heine, marcaram a juventude de
Francisca Júlia. A professora Maria de Lourdes Eleutério sintetiza muito bem
essa sua predileção:
“Francisca lia versos, muitos versos,
gostava dos românticos, dando preferência a Goethe e Heine, os quais traduzia,
possivelmente do francês, e os publicava. Ela não copiava os versos do irmão.
Na verdade, mesmo tendo publicado alguns livros, ele não era um bom poeta. Mas
era jornalista e ajudou Francisca a lançar seus próprios poemas pela imprensa.
Depois escreveram juntos um volume para crianças.
“Traduzir como fazia Francisca era um
expediente muito usado e consentido. Uma atividade que ficava na penumbra, que
nunca se divulgava, podia-se fazer no mais recôndito do lar.” (in “Vidas de Romance”, de Maria de Lourdes Eleutério, doutora em Sociologia pela USP)
Apesar
de parnasiana na forma, Francisca Júlia também teve passagem pelo simbolismo,
introduzido no Brasil nessa última década do século XIX e que teve no
catarinense Cruz e Souza o seu mais destacado representante.
“SOIRÉE” E CONCURSO LITERÁRIO
Em
fevereiro de 1895, Francisca Júlia participa de uma “soirée” no aristocrático clube Germânia,
em São Paulo, num evento em benefício às famílias necessitadas dos que morreram
na catástrofe da barca Terceira,
organizado pelo secretário do Interior, Cesário Mota.
Levada
pelo braço do poeta Filinto de Almeida – esposo da escritora Júlia Lopes de
Almeida –, Francisca Júlia, timidamente subiu ao tablado. Esbelta e distinta,
como descrita numa notícia de jornal, Francisca Júlia começou a recitar os seus
versos. Declamou os dois sonetos chamados “Musa Impassível”. Silencio absoluto,
religioso, na sala. A princípio, com uma vez fraca, baixa. Gradualmente, foi
elevando a voz. Fez uma declamação esplendida, dando-lhes a marca “de sua musa tersa e vigorosa”.
Estavam
presentes o presidente do Estado de São Paulo, Dr. Bernardino de Campos,
secretários e respectivas famílias, além do “público
mais refinado e culto de São Paulo”. Também recitaram a poetisa Zalina
Rolim e o poeta Júlio César da Silva, irmão de Francisca Júlia.
Em
fevereiro de 1898, Francisca Júlia foi convidada pelo jornal “Correio Paulistano” para participar do
júri de um concurso de poesia, juntamente com a escritora Ibrantina Cardona
(autora de “Plectos”). Zalina Rolim
também faria parte da comissão julgadora, mas não participou. Francisca Júlia e
Ibrantina apresentaram laudos divergentes, sendo então convocado João Monteiro
como “desempatador”, que concordou com Francisca Júlia, dando a vitória ao
poeta Adolfo Araújo, ficando Baptista Cepellos em segundo lugar.
Em
1899, Francisca Júlia publica o “Livro da
Infância”, obra didática logo adotada pelo Governo de São Paulo em escolas
do primeiro grau, e que teve o prefácio escrito por seu irmão Júlio César da
Silva.
“BRANCA, MUITO BRANCA, FRIA, MUITO FRIA”
Poucas
fotografias ou gravuras ficaram de Francisca Júlia, não chegando a uma dezena.
É de se supor que todo o seu material bibliográfico – incluindo aqui
fotografias, recortes de jornais, documentos etc – tenham ficado, após a sua
morte, de posse de seu irmão Júlio César da Silva. O poeta e crítico literário Péricles
Eugênio da Silva Ramos, um dos maiores estudiosos da vida e da obra de
Francisca Júlia, emprestou da filha de Júlio César, dona Flora da Silva Aquino,
um valioso álbum contendo inúmeros recortes sobre Francisca Júlia,
criteriosamente catalogados pelo irmão. Muito desse material foi publicado na
segunda edição de “Esfinges”, a
título de fortuna crítica.
Quem
fez uma razoável descrição do tipo físico de Francisca Júlia foi o escritor
Wenceslau de Queiroz, que publicava a coluna “Berlinda” no “Correio
Paulistano”. Na edição de 4 de abril de 1893, Queiroz assim descrevia a
poetisa: “uma ´jeune fille´ clara, de
olhos negros, tez e fronte da alvura cetinosa das camélias, na frase de um poeta.
Rosto oval, cabelos castanhos, estatura mediana. Mãos brancas, nervosas, finas
e delicadas”.
Na
edição de 20 de fevereiro de 1898, Wenceslau de Queiroz destacava a decantada
“frieza” (ou impassibilidade) de Francisca Júlia: “branca, muito branca, fria, muito fria”.
"ESFINGES": ARTÍFICE DE VERSOS
Seu
segundo, “Esfinges” – ou, conforme a
ortografia da época, “Esphinges” –, só apareceria em
1903, com o mesmo prefácio do amigo e admirador João Ribeiro, sendo editado
pela firma Bentley Júnior & Cia. Nele, Francisca Júlia reuniu grande parte
dos sonetos publicados em seu primeiro livro, acrescentando outros inéditos. A
exemplo de “Mármores”, seu novo livro
mereceu a atenção da crítica. Aristeu Seixas não poupou elogios: “Nenhuma pena manejada por mão feminina, seja
qual for o período que remontemos, jamais esculpiu, em nossa língua, versos que
atinjam a perfeição sem par e a beleza estonteante dos concebidos pelo raro
gênio da peregrina artista.”(6)
Outros
poetas famosos não deixaram de manifestar, em crônicas emocionadas, vibrantes
elogios à mais nova produção literária de Francisca Júlia, entre eles, Vicente
de Carvalho e Coelho Neto.
Francisca
Júlia, pelo pouco que se pode investigar sobre a sua vida, sempre foi alheia à
publicidade, sendo reclusa e dedicada aos serviços domésticos. Aqui não se pode
evitar a comparação com a poetisa goiana Cora Coralina ou a mineira Adélia
Prado, que dividiram a sua vida entre a poesia e a vida doméstica.
Em
1904, o poeta Péthion de Villar (na verdade, o Dr. Egar Moniz Barreto de
Aragão) comunica a Francisca Júlia que ela fora proclamada membro efetivo do
Comitê Central Brasileiro da Societé Internacional Elleno-Latina, de Roma.
O
crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos não tem dúvidas em considerar Francisca
Júlia como a única representante do Parnasianismo no Brasil que conseguiu
atingir todos os objetivos desse movimento, como o ideal de beleza e
impassibilidade, já que outros poetas parnasianos, Bilac inclusive, não
obtiveram êxito semelhante: “(...) com
efeito, [Francisca Júlia] é plástica
e sonora; a poetisa professou a arte pela arte, conheceu o “Mot juste”, desejou a austeridade
formal e sobretudo timbrou em ser impassível, coisa de que os outros
parnasianos brasileiros não fizeram questão”.
A
professora Nádia Battella Gotlib salienta esse interesse de Francisca Júlia
pela busca da perfeição poética:
Na linha da tradição herdada do final do
século XIX e que persistem, em alguns casos, até os anos 20 do século seguinte,
persiste a poesia que prima pelo acabamento nos moldes parnasianos, na trilha
de um dos líderes desse movimento: o poeta Olavo Bilac. É o caso da escritora
Francisca Júlia, por exemplo, que mantém repertório temático de gosto
greco-latino e cultiva sonetos imitados dos poetas-homens que considerava
mestres. Até nos próprios títulos nota-se o aplacamento de ânsias e emoções,
que são praticamente domesticadas em favor da objetividade e dos rigorosos
compromissos formais. (i “A Literatura Feita por Mulheres no Brasil”,
de Nádia Battella Gotlib).
É
natural que Francisca Júlia também tivesse os seus críticos. O mais destacado
foi, sem dúvida, Mário de Andrade. Em 1921, publicou no “Jornal do Commercio”, de São Paulo, a série de artigos “Mestres do Passado”, onde critica os
poetas parnasianos Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de Oliveira e, de
quebra, também coloca nessa relação Francisca Júlia, que considerava didática,
“gelada”, pois sacrificava a poesia à arte de “fazer belos versos”.
Francisca
Júlia é considerada umas das precursoras da literatura feminina no Brasil, ao
lado de Júlia Lopes de Almeida. A professora Cristina Ferreira Pinto faz uma
comparação entre as duas:
“Considera-se que Francisca
Júlia e Júlia Lopes de Almeida são duas precursoras da literatura feminina no
Brasil, pois elas se encontram incluídas no cânon literário e sob muitos
aspectos abrem caminho para outras escritoras que virão depois e para quem
servirão de modelo. No entanto, falar dessas duas autoras como precursoras da
literatura brasileira escrita por mulheres exige que se considere, primeiro que
tudo, a posição que tanto Francisca Júlia como Júlia Lopes mantinham em relação
a suas próprias obras e ao seu papel como escritora, ou seja, sujeito feminino
que escreve. Francisca Júlia ´se escreve´ como poeta no sentido tradicional,
´masculino´ da palavra. Sua poesia, de caráter parnasiano, obedece padrões de
impessoalidade e impassibilidade, seguindo a orientação dominante naquele
período literário da ´arte pela arte´. Quanto ao seu papel de mulher que
escreve, é bastante significativo o fato de que Francisca Júlia abandona a
literatura quando se casa, passando a dedicar-se exclusivamente à vida no lar.
Por sua vez, Júlia Lopes de Almeida segue, apoia e promove a ideologia segundo
a qual o primeiro dever da mulher é para com a família. Pode-se ver assim que,
enquanto Francisca Júlia não chega a assumir-se como sujeito feminino que
escreve, Júlia Lopes, sim, se assume como tal, mas segundo a ordem dominante
que define (e limita) o sujeito feminino como aquele que vive por e para o
outro.” (in “A mulher e o cânon poético brasileiro”, de Cristina Ferreira
Pinto, Universidade do Texas).
A VIDA EM CABREÚVA
Já
“balzaquiana”, Francisca Júlia continuava morando com os pais. Por motivo de
transferência de sua mãe, através de ato de 16 de dezembro de 1905, para uma
escola de Cabreúva (SP), a poetisa acompanha os pais. A família deve ter se
transferido para essa cidade ainda em dezembro de 1905, ou em janeiro de 1906.
Neste ano, Francisca Júlia publica na imprensa algumas cartas comunicando que
ajudava a sua mãe, ensinando versos às alunas, como preparação para o exame
escolar. Em sua casa, era ela quem executava os serviços domésticos, inclusive
a cozinha. Sua vida era simples e sem luxo. Tomava banho no rio, usava roupas
simples, e, quando desejava coisa melhor, viajava até a cidade de Itu (SP) para
adquiri-la.
A
vida íntima da poetisa, antes de seu casamento, está envolta em névoas.
Francisca Júlia era discreta e não consta que tenha deixado um diário onde
anotasse as suas intimidades amorosas. Mas é fato que, em 1906, teria se
enamorado por um belo rapaz, em Cabreúva. A história adquire requintes de
melodrama, levando-se em conta que diziam que o jovem, formado em farmácia no
Rio, não era muito certo das ideias. Conta-se que, certa ocasião, Francisca
Júlia ouviu uma conversa no portão onde falavam que seu amado era “doido”. Ela
ficou de sobreaviso. O rapaz jurou-lhe que tinha suas faculdades mentais em
plena ordem. Mas não surtiu efeito. A poetisa preferiu evitá-lo e ficar
sozinha, preterindo essa que teria sido a sua grande paixão.
Há
indícios de que Francisca Júlia teria tido um romance com um famoso
intelectual. Mas não teria durado muito e ele devolveu-lhe as cartas que ela
escrevera, dentro de uma caixa de sapato, e, depois, casou-se no Rio. Aqui
existe dúvida se o farmacêutico e o intelectual eram duas pessoas distintas ou,
na verdade, seriam a mesma pessoa. Essa dúvida foi ressaltada pelo sobrinho de
Francisca Júlia, Paulo César da Silva, filho do poeta Júlio César da Silva, irmão
da poetisa, que uma vez ouviu o seu pai comentar sobre o caso, mas não
conseguiu se lembrar se eram a mesma pessoa ou não.
Para
o crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, o “intelectual” seria o escritor
João Luso, pseudônimo de Armando Erse de Figueiredo, português nascido em Louzã
em 1875 que, vindo para o Brasil em 1893, naturalizou-se em 1939. Em São Paulo,
João Luso trabalhou no comércio, escrevendo para a imprensa paulistana. A
partir de 1898 foi secretário do “Diário de Santos”, mudando-se em
1900 para o Rio de Janeiro, continuando no jornalismo e na literatura. Em 1932,
tornou-se membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Péricles
Eugênio acreditava que esse “romance” teria se dado entre 1893 e 1900. (Págs.
190-191).
A
respeito dos “namoros” ou “pretendentes” de Francisca Júlia, escreveu o
escritor Raimundo de Menezes, em seu delicioso livro “Escritores na Intimidade”: “Moça
bonita, inteligente, por essa época lhe apareceram apaixonados admiradores que
quiseram desposá-la. Mas a poetisa como que temia as tramas do amor... (...)
Andou de noivado ajustado com um brilhante jornalista, mas logo, por motivo
desconhecido, o compromisso foi desfeito.”
Já
nesse mesmo ano de 1906, a família da poetisa manifestava vontade de deixar a
cidade. O jornal “Correio de Salto”,
em sua edição de 16 de dezembro de 1906, faz um apelo aos intelectuais daquela
cidade, então vila, para que conseguissem a transferência de dona Cecília para
uma das escolas locais. Francisca Júlia, por sua vez, tem interesse em voltar a
São Paulo. O jornalista desse jornal visitara Francisca Júlia duas vezes, nos
dois dias em que passou em Cabreúva, chamando-a de “Deusa da Arte”. Para o
jornalista, Francisca Júlia possuía “uma
beleza singela, voz educada e maviosa; mostrava-se também cândida e afável.”
Defendendo
a ideia da vinda de Francisca Júlia para Salto, o jornal escreveu: “Sabemos que o Sr. Miguel Luso, idoso e
cansado, não deseja mudar-se; compete, portanto, aos intelectuais de Salto
conseguirem sua anuência. (...) Uma vez aqui residindo os seus progenitores,
teríamos frequentemente a visita da distinta poetisa, que só proveitos traria à
nossa população, concorrendo para o nosso progresso artístico e intelectual.”
Quando
ainda morava em Cabreúva, Francisca Júlia foi convidada para ingressar na
Academia Paulista de Letras, que alguns literatos tentavam fundar em São Paulo.
A princípio, a poetisa teria aceitado o convite, conforme se dá a entender pela
carta abaixo; mas consta que, depois, não o aceitou, pois desejava que o seu
irmão, o poeta Júlio César da Silva, também fosse convidado. Eis a carta:
“Cabreúva, 17 de junho de 1907
Sr. Dr. Alfredo de Toledo:
Para preenchimento das duas cadeiras, na
Academia Paulista de Letras, dou o meu voto aos Drs. Adolfo Araújo e Jacomino
Freire. Não sabendo quais os patronos escolhidos pelos meus caros colegas da
Academia, peço a V. Exa. escrever-me os que já o foram, para que eu possa
escolher o meu.
Criada e admiradora,
Francisca Júlia” (in “Revista
da Academia Paulista de Letras”, ano II, nº 5, 12/3/1939, pág. 148)
Em
3 de julho de 1908, realizou-se em Itu, no salão da Câmara Municipal, uma
concorrida conferência literária. Francisca Júlia foi convidada para esse
evento, que contou com um público seleto de, aproximadamente, oitenta pessoas.
Escolheu o tema “A feitiçaria sob o ponto
de vista científico”, destacando o ceticismo do mundo que torna os homens
descrentes de tudo: “(...) nossos
sentimentos iludem-nos; por eles não percebemos o movimento da Terra, nem com
eles podemos provar ou negar a existência de Deus.”
Faz
até mesmo citações da Cabala: “Nada há no
mundo, nem mesmo um broto de erva, sobre o qual um espírito não reine.” Fala
de lobisomem, bruxaria. Percebe-se que, nesse período, Francisca Júlia
demonstrava estar envolvida pelo misticismo e sobrenatural.
CASAMENTO E AFASTAMENTO DA POESIA
Por decreto de 5 de outubro de 1908, a mãe de
Francisca Júlia, a professora Cecília, foi removida para a escola de Lajeado,
na Capital. A família deve ter se estabelecido nesse subúrbio paulistano –
depois chamado de Carvalho de Araújo e, atualmente, Guaianazes – nesse final de
1908, provavelmente entre outubro e novembro. Nesse curto espaço de tempo,
Francisca Júlia deve ter conhecido aquele que, alguns meses depois, seria o seu
futuro esposo. O namoro não deve ter durado mais do que três meses.
Em
27 de fevereiro de 1909, na Igreja de São Miguel, no Lajeado, aos 37 anos,
Francisca Júlia contrai matrimônio com Filadelfo Edmundo Munster, telegrafista
da Estrada de Ferro Central do Brasil. Filho de Filadelfo de Oliveira Rophesia
e Mariana de Oliveira Rophesia, Filadelfo Munster era natural de Barra Mansa
(RJ), de poucas posses e limitada bagagem intelectual. A bela cerimônia,
celebrada pelo padre Otto Boehm, teve como testemunhas Vicente de Carvalho,
Júlio César da Silva, Antônio Tolosa, Salvador Santos e a presença do padre
Martins Forner. Curiosamente, no registro do casamento, Francisca Júlia
declarou a idade de 29 anos, quando já tinha 37 anos.
A
notícia do casamento-relâmpago de Francisca Júlia foi publicada nos jornais “O Estado de S. Paulo”, “Correio Paulistano” e “Diário Popular”, nas edições do dia 1º
de março, e no “Commercio de S. Paulo”,
na edição de 2 de março.
A
partir desse ano, Francisca Júlia decide deixar a poesia de lado e dedicar-se
apenas ao esposo e ao lar. A sua casa era modesta, mas muito bem cuidada. O
esposo era homem de poucas palavras, mas elogiava a sua “Chiquinha”, que ele
considerava uma grande poetisa. Francisca Júlia sempre viveu bem com o marido,
por quem tinha respeito e amor.
Depoimento
verbal do desembargador Manoel Carlos, também conhecido poeta em seu tempo, ao
crítico Péricles Eugênio patenteia o pouco aparato intelectual do consorte de
Francisca Júlia: “A casa de Francisca
Júlia, embora modesta, era muito bem arranjada. Pouco falou o esposo de
Francisca Júlia, e em certo momento observou: ´Dizem que a Chiquinha é uma
grande poetisa. Eu não sei, não sou poeta´.”
O
casal morava na Travessa Conselheiro Furtado, nº 12. Alguns anos mais tarde, em
1912, em colaboração com o inseparável irmão Júlio César, Francisca Júlia
produz o seu último livro, “Alma Infantil
(Verso para uso das escolas – Monólogos, diálogos, recitativos, scenas
escolares, hymnos e brincos infantis)”, editado pela Livraria Magalhães. O então secretário do interior, Dr. Altino
Arantes, adquiriu boa parte da edição, que seria utilizada pelas escolas do
Estado.
Em
1913, boatos asseguram que Francisca Júlia teria interesse em ingressar na
Academia Paulista de Letras. A poetisa negou, pois, para ela, a arte “não se faz por associação”. Neste ano,
a revista “O Piralho” publicou, na
edição de 25-1-1913, o autógrafo de “Dança de Centauras”.
No
ano seguinte, Francisca Júlia adoece, sofrendo os incômodos da doença durante
os seis últimos anos de vida.
O RETORNO À POESIA
Em
1915, Francisca Júlia volta a publicar as suas poesias, através das páginas da
conceituada revista “A Cigarra”.
Nesta revista, ao que pudemos apurar, a poetisa publicou as poesias: “A uma
santa” (24/11/1915), “A um velho” (1916), “Outra vida” (1/7/1919), “Alma
ansiosa” (1/11/1919); e postumamente: “Esperança” (póstuma, 15/1/1921), “Os
argonautas (1/7/1921), traduzida para o italiano por Leopoldo de Rocchi,
“Vênus” e “Aurora” (1/3/1922), traduzidas para o castelhano por Enrique
Bustamente y Ballivian.
Em
16 de dezembro de 1916, o jornalista Correa Júnior, de “A Época”, do Rio de Janeiro, entrevistou a poetisa. Perguntando se
ela estava sofrendo com a doença, Francisca Júlia respondeu: “Bastante. Tenho alucinações, provenientes,
de certo, da intoxicação do ácido úrico. Há ocasiões que de repente saio da
vida real e entro no sonho. Vejo pessoas e seres desconhecidos. A princípio
cuidei que me estava tornando médium. Mas não, isto é princípio do fim.
Sinto-me feliz ao observar, dia a dia, que esse fim se aproxima. Sabe. É muito
bom morrer. Minha vida encurta-se hora a hora. Tenho ambições, oh! muitas
ambições, mas são de outra natureza”. Segundo o jornalista, Francisca Júlia
levantou “os olhos para o alto, como se
aspirasse somente a bem-aventurança da outra vida...”
Nessa
entrevista, Francisca Júlia manifesta a sua vontade de reunir uma coleção de
sonetos decassílabos, inspirados no moral de Pitágoras, comentando-o a seu
modo. O título escolhido seria “Versos
Áureos”. Mas acreditava que não conseguiria concluí-lo, por causa da falta
de saúde. Aqui está uma prova de que Francisca Júlia não abandonou
definitivamente a poesia após o casamento, dedicando-se exclusivamente ao lar,
conforme muitos acreditam. Sobre o pretendido livro, Francisca Júlia assim se
manifestou, na citada entrevista ao jornalista Correia Júnior: “Parece à primeira vista um título
pretencioso. Mas não é. Queria traduzir cada conceito de Pitágoras,
comentando-o ao meu modo. Acho que conseguiria fazer alguma coisa de sério em
arte, alguma coisa de muito sério para ressarcir tanta frivolidade que espalhei
em livros e jornais.”
Para
esse livro, Francisca Júlia já havia selecionado os poemas “Tudo é vaidade” e
“Perfeição”. Mas, como “já não tinha
saúde”, a poetisa acreditava que os “Versos Áureos” não viriam a lume.
Na
segunda década do século XX, Francisca Júlia já era uma poetisa há muito
consagrada. Aos 46 anos, recebeu a maior homenagem que lhe prestaram em vida,
quando um grupo de admiradores paulistas organizou, em 1917, uma sessão
literária e ofereceu o seu busto à
Academia Brasileira de Letras. Apesar de essa cerimônia não se ter realizado,
era a consagração da talentosa artífice de versos, da “Musa Impassível”, como
ficou conhecida.
A
Academia Brasileira de Letras, então presidida pelo poeta Medeiros e
Albuquerque, em sessão de 21 de junho de 1917, decidiu aceitar a oferta.
Arnaldo Simões Pinto, poeta e jornalista, foi o porta-voz dos poetas paulistas
e entregou carta de sua autoria, que foi lida por Filinto de Almeida. Mas o
busto não foi enviado, tendo em vista o falecimento do jornalista. No entanto,
Francisca Júlia não ficou sem a sua homenagem. A Casa de Machado de Assis
aceitou o busto, ainda em vida da autora, para ser colocado em uma de suas
salas.
Em
1920, por ocasião de suas Bodas de Prata da estreia como poetisa (“Mármores”,
1895), a revista “A Vida Moderna”
tentou organizar uma sessão literária, onde seriam declamadas exclusivamente
poesias de Francisca Júlia. Fariam parte Amadeu Amaral, Ciro Costa, Luiz
Carlos, Roberto Moreira, que executariam o programa da festa. A homenagem seria
mais do que merecida, afinal a poetisa havia se retirado do meio literário “depois de um fulgor vivo e intenso no mundo
d´arte, para o fundo da sua modéstia, para o interior de sua vida de esposa,
deixando na admiração dos que a conheceram uma saudade e um abandono”. Porém,
essa pretendida homenagem não se concretizou.
Em
“A Vida Moderna”, Francisca Júlia
publicou as poesias “Rústica”, “A um velho”, “A Fonte de Jacó” e “A uma santa”,
estas duas últimas na edição de agosto de 1920. E na “Revista do Brasil”, de Monteiro Lobato, vamos encontrar novamente
“Rústica” e “A um velho”.
A MORTE IMPASSÍVEL
Busto de Francisca Júlia, em Eldorado |
Sobre
a vida conjugal de Francisca Júlia escreveu Raimundo de Menezes: “Viveram, assim, como dois autênticos
namorados em plena lua de mel, dilatados anos, até que, um dia, a desgraça
resolveu acabar com tanta felicidade. (...) Um dia o infortúnio veio bater à
porta do lar feliz de Francisca Júlia. Entrou, e destelhou-o...”
Acometido
de tuberculose, após demorado tratamento, Filadelfo Munster faleceu em 31 de
outubro de 1920. A perda do companheiro tão querido foi arrasadora para a
sensível poetisa, cuja emoção não pode conter, em nada demonstrando ser a
autora daqueles versos frios, impassíveis. Confessou aos amigos que a sua vida
não tinha mais sentido sem a companhia do marido e deixou claro que “jamais poria o véu de viúva” (seria uma
indicação de suicídio?). Retirou-se para repousar em seu quarto e acredita-se
que tenha ingerido excessiva dose de narcóticos. No dia seguinte, de acordo com
uma versão muito divulgada, ao abraçar o caixão onde jazia o corpo inerte do
esposo, num último e emocionado adeus, Francisca Júlia falecia aos 49 anos. Seu
corpo foi enterrado no Cemitério do Araçá, em São Paulo, ao meio-dia de 2 de
novembro.
Sobre
a morte de Francisca Júlia, criaram-se lendas. Alguns garantem que a poetisa,
após a morte do esposo, retirou-se para o quarto, ingeriu narcóticos e não mais
acordou. A versão mais difundida é a que teria falecido abraçada ao caixão onde
jazia o corpo do falecido. Esta versão é corroborada pelo poeta J. Mendes, que
cita o escritor Raimundo Magalhães, que por sua vez relata o que ouviu de Múcio
Leão sobre os últimos momentos de Francisca Júlia:
“A poetisa veio, debruçou-se sobre o
caixão do marido, sem nenhuma emoção aparente, sem sequer uma lágrima nos
olhos. Ali ficou alguns minutos, como a segredar coisas carinhosas ao ouvido do
morto. Os minutos iam passando. Urgia fechar o caixão. Quando Júlio César da
Silva, outro poeta, procura afastar a irmã do cadáver do cunhado, estremece. O
que tinha nos braços era um corpo sem vida. Francisca Júlia também tinha
morrido” (in “Francisca Júlia”, de J. Mendes, coluna “Crônica de Eldorado”, sem
data e sem referência do jornal)
Já
essa versão é contestada por Raimundo de Menezes: “Correu, então, o boato de que Francisca Júlia havia se suicidado,
ingerindo poderoso narcótico. Mas tal não se dera. Pura invencionice, criada
pela bisbilhotice popular. Morrera de dor, nos paroxismos do seu grande e
imensurável afeto.”
O
crítico Péricles Eugênio, ouvindo testemunhas oculares, afiança que, no dia da
morte do esposo, Francisca Júlia se retirou para repousar e “não mais acordou, apesar dos esforços
médicos para reanimá-la, vindo a falecer na manhã do dia do enterro do marido”.
O óbito foi atestado pelo Dr. Heitor Maurano, que deu como causa mortis “hemorragia cerebral” (assento nº 409, fls. 9vº, do
Livro C-31, do Registro de Óbitos, Registro Civil do 2º Subdistrito da
Liberdade, Capital). O corpo de Francisca Júlia foi sepultado no terreno
perpétuo nº 9, da quadra 6-A, jazigo comprado pelo irmão Júlio César. O
jornalista João Pontes de Moraes, que informou o óbito de Filadelfo Munster,
afirmou que Francisca Júlia costumava dizer que “jamais poria o véu de viúva”.
Escreveu
Andrade Muricy: “A morte deu, assim,
epílogo singularmente romântico à recatada existência da Poetisa Impassível. Ao
artista vigoroso que nela havia, talvez esse fim causasse horror, se o houvesse
previsto; talvez lhe parecesse por demais sentimental, por demais expressivo
para a discreta linha afetiva e para a serena contensão do seu sonho de
beleza”.
Seu
corpo foi baixado à campa ao meio-dia de 2 de novembro de 1920, Dia de Finados.
Discursou à beira do túmulo o poeta Ciro Costa. Foram prestar o seu último
adeus à pranteada poetisa muitos dos futuros modernistas de 1922: Oswald de
Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti. Os pais de
Francisca Júlia, o irmão Júlio César e esposa mandaram rezar missa de sétimo
dia na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, no dia 8 de novembro, às 8h. Outra
missa foi mandada rezar às 9h por um grupo de escritores e admiradores da
poetisa: Martins Fontes, Paulo Setúbal, Freitas Vale, Menotti del Picchia, Ciro
Costa, Valdomiro Silveira, Agenor Silveira, Nilo Costa, Heitor de Moraes, Canto
e Melo, Couto Magalhães, João Silveira, Gelásio Pimenta, Cláudio de Souza,
Alberto de Souza, Manoel do Carmo, Artur de Cerqueira Mendes e René Thiollier.
A “MUSA IMPASSÍVEL”, DE BRECHERET
Logo
em seguida à morte da poetisa, o deputado José Freitas Vale, um de seus
admiradores, apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 44/1920, que
autorizava o Governo do Estado a erigir um mausoléu para Francisca Júlia, com a
abertura de um crédito de 15 contos de réis. Deram parecer favorável, em 17 de
dezembro de 1920, os deputados Mario Tavares, Júlio Prestes e Azevedo Júnior.
Já em sessão de 23 de dezembro, a proposição é defendida no Senado paulista por
Luiz Pisa, sendo logo aprovado e convertido em lei.
A
estátua foi burilada pelo cinzel de Victor Brecheret e colocada no túmulo em
1923, durante o governo de Washington Luiz. Sobre essa escultura, as palavras
de Menotti del Picchia dizem tudo: “A
estátua que se ergue hoje no cemitério do Araçá, a Musa Impassível, é um mármore criado pelo cinzel triunfal
de Victor Brecheret. Na augusta expressão dos seus olhos, do seu busto ereto,
da suas mãos rítmicas, há toda a grandeza e a beleza daquela musa impassível da
formidável parnasiana que concebeu e realizou a ‘Danças das Centauras’. O estatuário é bem digno da poetisa.” (7)
Para
Péricles Eugênio, a estátua, “apesar de
branca, imóvel e impassível, suas linhas, principalmente de perfil, como que
fremem angustiadamente sobre os despojos da poetisa que desejou morrer e teve o
seu voto atendido para que não ficasse sozinha no mundo.”
Nos últimos anos, a vida e a obra de Francisca Júlia vêm sendo
reabilitadas por pesquisadores de todo o País, com a publicação de teses e dissertações
acadêmicas. Em 2008, Marcia Camargos lançou “Musa
Impassível - A poetisa Francisca Júlia no cinzel de Victor Brecheret” (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo). E em 2020, cento e vinte e cinco anos após a
publicação da edição original, o Senado Federal reeditou “Mármores”, quarto volume
da Coleção Escritoras do Brasil.
Francisca Júlia vive.
SELETA DE SONETOS
Musa Impassível
Musa!
um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto
jamais te afeie o cândido semblante!
Diante
de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De
um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em
teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em
tua boca o suave e idílico descante.
Celebra
ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora
o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me
o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa;
A
rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante
aos ouvidos d’alma; a estrofe limpa e viva;
Versos
que lembrem, com seus bárbaros ruídos
Ora
o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora
o surdo rumor de mármores partidos.
Noturno
Pesa
o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho,
passo a passo, o cortejo funéreo
Se
arrasta em direção ao negro cemitério...
À
frente, um vulto agita a caçoula do incenso.
E
o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se.
O morto vai numa rede suspenso;
Uma
mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora
no ar o rumor de misticismo aéreo.
Uma
ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da
noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma
estrige soluça; a folhagem farfalha.
E
enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites,
acima dele, em silêncio, flutua
O
lausperene mudo e súplice das almas.
Carlos Gomes
Essa que plange, que soluça e
pensa,
Amorosa e febril, tímida e
casta,
Lira que raiva, lira que
devasta,
E que dos próprios sons vive suspensa.
Guarda nas costas uma escala
imensa,
Que, quando rompe, espaço
fora, arrasta
Ora do mar as queixas ora a
vasta
Sussurração de uma floresta
densa.
Ei-la muda, mas tal
intensidade
Teve a música enorme do seu
choro
O dilúvio orquestral dos seus
lamentos.
Que muda assim, rotas as
cordas há de
Para sempre vibrar o eco
sonoro
Que sua alma lançou aos
quatro ventos.
À noite
Eis-me
a pensar, enquanto a noite envolve a terra,
Olhos
fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me,
pois, a pensar... De antro em antro, de serra
Em
serra, ecoa, longo, um réquiem doloroso.
No
alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando,
noite dentro, o claro olhar piedoso.
A
alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um
mórbido langor de calma e de repouso...
Em
noite assim, de repouso e de calma,
É
que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A
alma cheia de dor, a dor cheia de alma...
É
que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando
já quimeras pressentidas
Que
mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.
Os Argonautas
Mar fora, ei-los que vão,
cheios de ardor insano;
Os astros e o luar - amigos sentinelas-
Lançam bênção de cima às largas caravelas
Que rasgam fortemente a vastidão do oceano.
Ei-los que vão buscar
noutras paragens belas
Infindos cabedais de algum tesouro arcano...
E o vento austral que passa, em cóleras, ufano,
Faz palpitar o bojo às retesadas velas.
Nos céus querem ver,
miríficas belezas;
Querem também possuir tesouros e riquezas
Como essas naus que têm galhardetes e mastros.
Ateiam-lhe a febre essas
minas supostas...
E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas,
A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros...
A ondina
Rente
ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina,
Solto,
às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,
Pela
praia passeia. A alvacenta neblina
Tem
reflexos de prata à refração da lua.
Uma
velha goleta encalhada, a bolina
Rota,
pompeia no ar a vela, que flutua.
E,
de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se
espumante, à praia vem, recua...
E
surgindo da treva, um monstro negro, fito
O
olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ela
tenta fugir, sufoca o choro, o grito...
Mas
o mar, que, espreitando-a as ondas avoluma,
Roja-se
aos pés da ondina e esconde-se no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões
de espuma.
Amphitrite
Louco,
às doudas, roncando, em látegos, ufano,
O vento o seu furor colérico passeia...
Enruga e torce o manto à prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.
A
seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pássaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo pano.
Sossega
o vento; cala o oceano a sua mágoa;
Surge, esplendida e vem, envolta em áurea bruma,
Amphitrite; e, a sorrir, nadando à tona d'água,
Lá
vai... mostrando à luz sua formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco amiculo das ondas.
Paisagem
Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim da árvores avanço.
Ao fundo do pomar, entre folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do límpido regato.
Nenhuma ave sequer, sobre a macia alfombra,
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechã sob a noturna sombra.
E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas a dentro entrando, a noite desce, desce...
E espalham-se no céu camândulas de estrelas...
LIVROS PUBLICADOS
1895 - “Mármores”, editado por
Horácio Belfort Sabino; 1920 - 2º edição.
1899 - “Livro da Infância”,
Tipografia do Diário Oficial do Estado.
1903 - “Esfinges”, Bentley Júnior
e Cia.
1912 - “Alma Infantil” (em
colaboração com Júlio César da Silva), Livraria Magalhães.
1921 - “Esfinges” (2º edição),
Monteiro Lobato & Cia.
1961 - “Poesias”, reunidas por
Péricles Eugênio, Comissão Estadual de Cultura.
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA
1. João Ribeiro, prefácio de
"Mármores";
2. Wenceslau de Queiroz, "Francisca
Júlia da Silva", Diário Popular,
18/7/1895 a 26/7/1895;
3. Andrade Muricy, "Suave
Convívio";
4. Péricles Eugênio da Silva Ramos,
Introdução e Notas in “Poesias”, Comissão Estadual de Cultura, São Paulo, 1962;
5. Múcio Leão, "Autores e
Livros", volume I, nº 14;
6. Raimundo de Menezes, "Escritores
na Intimidade";
7. Lygia Lemos Torres, "Francisca
Júlia da Silva", Revista da Academia
Paulista de Letras, junho de 1952;
8.
Lygia Lemos Torres, "Damas
Paulistas", Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, volume 51, pág. 366.
9. Milton de Godoy Campos,
"Francisca Júlia da Silva", Correio
Paulistano, 7/2/1960;
10. Angel Crespo, "Muestruario de
poemas simbolistas brasileños", Revista
de Cultura Brasileña, Madrid, nº 22, setembro de 1967.
11. Livraria São José, "Francisca
Júlia da Silva, Breve Evocativo do Seu Centenário - 1871-1971", Rio de
Janeiro, 1972.
12. Clube de
Letras Sete Lagoas (diversos autores), "Elogio à Poetisa Francisca
Júlia (da Silva Munster), Sete Lagoas (MG), 1979, por ocasião da IV Festa da
Cultura, promovida pela Academia Eldoradense de Letras.
13. Roberto
Fortes, "A poetisa do Vale", Tribuna
do Ribeira, 7/10/1981.
14. Roberto
Fortes, "Francisca Júlia, a Musa Impassível", Tribuna do Ribeira, 17/11/1990.
15. Roberto
Fortes, "A poetisa Francisca Júlia", Tribuna do Ribeira, 17/9/1991.
15. Roberto
Fortes, "Francisca Júlia, quem diria, acabou na Internet...", Jornal Regional, 16/7/1999.
16. Roberto
Fortes, "Ainda Francisca Júlia", Jornal Regional, 20/8/1999.
17. Roberto
Fortes, "Jornais antigos e Francisca Júlia", Jornal Regional, 21/1/2000.
18. Roberto
Fortes, "80 anos sem Francisca Júlia", Jornal Regional, 1/12/2000.
19. Roberto
Fortes, "Há 130 anos, Francisca Júlia nascia em Eldorado", Jornal Regional, 21/9/2001.
NOTAS
(1)
O poeta João Mendes (1918-1997), de Eldorado (SP) – que pesquisou
exaustivamente a vida e a obra de Francisca Júlia (fundando, inclusive, uma
academia de letras na cidade em homenagem à poetisa) – afiança: “Efetivamente ela nasceu em 31 de agosto de
1871 e não 1874. O documento que temos para essa afirmação não comporta
dúvidas. É a certidão de seu batismo colhida no arquivo paroquial.” (in Tribuna
do Ribeira, de 14/11/1981, pág. 2).
(2) “Francisca Júlia da Silva, Breve Evocativo do Seu Centenário,
1871-1971”, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1972, pág. 5.
(3).
Idem, págs. 3 e 4.
(4). Ibidem, pág. 5.
(5). Ibidem, pág. 5.
(6).
Ibidem, pág. 6.
(7). “Poesias”, de Francisca
Júlia, Comissão Estadual de Cultura, com introdução e notas de Péricles Eugênio
da Silva Ramos, São Paulo, 1962.
ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a
transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).