Após
ser encontrada na praia de Una, Jureia, município de Iguape, por dois índios,
no final de outubro de 1647, a imagem do Senhor Bom Jesus de Iguape foi trazida
à sede da Vila de Iguape e, em 2 de novembro, respeitosamente, lavada num
córrego, sobre uma pedra, para lhe ser retirado o salitre. Posteriormente, foi
construída uma gruta de alvenaria sobre essa pedra, que, segundo a tradição,
possuiria poderes miraculosos de cura. O local, então, passou a ser chamado de
Fonte do Senhor, e, a partir de 1843, de Fonte de Cima, em diferenciação à
Fonte da Saudade, inaugurada naquele ano, localizada mais abaixo.
Gravura meramente ilustrativa |
Sobre
essa “pedra que cresce”, o historiador Benedito Calixto, em seu estudo “Capitania de Itanhaém”, conta que, em
certa ocasião, a rocha teria se “vingado” da falta de respeito por parte de
umas meretrizes quanto à santidade do local. Diz o ilustre filho de Itanhaém:
“Na ribeira a que hoje chamam Fonte do Senhor, havia um
recanto a modo de lago pequeno, no qual como não faziam movimento as águas e
era pouco fundo, foi lançada a Santa Imagem para purificar-se do limo que do
mar havia recebido. Boiava ella por ser de madeira e elles com piedosa audácia
lhe puzeram uma pedra em cima ajudando com o peso para que ficasse coberta de
água, sobre outra pedra enquanto purificavam. Muitos annos se conservou este
lago servindo de piscina aos necessitados e dando aos enfermos milagrosa saúde
com o trabalho só de se lavarem em tão santas águas. Abusaram, porém, de tanta
piedade umas meretrizes, e a pedra, que até então era de pequena estatura,
querendo a seu modo vingar esta injúria, cresceu tanto que tomando todo o
circuito o tampou, deixando somente livre o ribeiro em cujas águas ainda hoje
estão depositados grandes remédios para muitas enfermidades.” (CALIXTO, p.
622)
Segundo
rezava a tradição, nesse recanto paradisíaco morava um ermitão. Como é sabido,
ermitão é um indivíduo, geralmente religioso, que opta por viver recluso em
lugares ermos, aparecendo só vez ou outra nas vilas ou cidades. A esse
respeito, escreveu o historiador Ernesto Guilherme Young (1850-1914) em seu
clássico estudo “Esboço Histórico da
Fundação da Cidade de Iguape”, de 1895:
“Consta que logo
depois do apparecimento da imagem do Senhor Bom Jesus em 1647, foi construída
uma ermida ao lado da pedra onde foi collocada a imagem para lavar, em cuja
ermida viveu durante muitos annos um homem que tinha dotado a irmandade com
todos os seus bens, e ahi elle era sustentado á custa das esmolas dadas pelos
romeiros que visitavam a dita pedra, á qual até hoje dão grande apreço,
considerando-a como milagrosa”. (YOUNG, p. 85)
No
entanto, Young demonstrou certa desconfiança quanto à existência desse ermitão:
“Não há um único
documento em que possa ser baseada esta tradição, sinão em alguns autos onde
figura Manuel Corrêa de Souza como ermitão e procurador da irmandade do Senhor
Bom Jesus, citando diversas pessoas que deixam de contribuir com seus annuaes.
Parece que si fosse verdadeira a existência d´esta ermida, o Reverendo Vigario
João Chrysostomo daria alguma noticia em sua informação, tanto mais que elle
fez a descripção da referida pedra. A casa citada por elle está collocada sobre
a tal pedra milagrosa, de fórma a conserval-a dos malfeitores, e coberta a
maior parte de tempo pela água da fonte, que entra e sae por uns pequenos
registros.”
(YOUNG, p. 85)
Em
seu estudo “Iguape, Cidade da Fé, Morada
da Esperança”, o historiador Ary de Moraes Giani (1913-2005) cita uma
reunião havida em 1740 na casa do “executor” da Irmandade do Bom Jesus,
Francisco Cardoso Madeira, perante o “ermitão”
Manoel Corrêa de Souza e os “irmãos”
Francisco Barreto, Antônio Antunes da Silva e João Alves Carneiro, na presença
dos quais o tabelião Francisco Xavier Pedroso lavrou escritura de compromisso
para o “refazimento” da Matriz de
Nossa Senhora das Neves e pela qual se obrigava o alferes José Teixeira de
Azevedo e Paulo Ribeiro de Moraes a “fornecer
o madeiramento necessário.” (GIANI, p. 28)
Pela
leitura dos documentos citados por Young e Giani, fica fora de qualquer dúvida
que, de fato, existiu um ermitão em Iguape, que fazia parte da importante
Irmandade do Senhor Bom Jesus de Iguape. É de se considerar plenamente aceitável
que, como ermitão, esse personagem tenha preferido morar um local afastado da Vila
de Iguape, e qual lugar seria mais adequado e agradável do que a Fonte do
Senhor?
REFERÊNCIAS
YOUNG, Ernesto
Guilherme. “Esboço Histórico da Fundação da Cidade de Iguape”, 1895, in Revista
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, págs. 49-153, Vol. II, 1898.
GIANI, Ary de
Moraes. “Iguape, Cidade da Fé, Morada da Esperança”, in “Seleções do Jornal de
Iguape”, agosto/1955.
CALIXTO,
Benedit. “Capitania de Itanhaém”, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. XX, 1915.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos
Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a
devida citação dos créditos).