A amizade é livre

"Em tempos de pandemia, cujos encontros ainda estão restritos, manter a atitude de continuar regando a planta da amizade e preparar o terreno para novas sementes pode contribuir paranovas experiências, aprendizados e, claro, para favorecer a saúde mental."  

A amizade é livre


Neste sábado, dia 31 de julho, o nadador brasileiro Bruno Fratus ganhou sua medalha de bronze nas Olimpíadas de Tóquio! Em sua entrevista publicada hoje¹ no jornal Folha de São Paulo, ele compartilhou que foi salvo pelo amor da esposa Michelle, dos pais e pelo amor e amizade de Bratt, melhor amigo e técnico que acompanhou de perto o enfrentamento de um quadro de depressão que se iniciou após ter perdido no Rio -2016. Fratus também fala sobre como estas pessoas contribuíram para encontrar um jeito mais leve de viver e reduzir sua autocobrança.

No dia anterior a esta vitória de Fratus foi comemorado o dia do amigo. Ao tomar conhecimento da existência desse dia do amigo, fiquei espantada ao perceber que eu nunca comemorei essa data com meus amigos, mas ao ouvir uma pessoa falando sobre sua comemoração, pensei sobre como é importante ter uma data de celebração desta relação potencializadora que transforma vidas.

Para dar um banho de esperança nestes tempos tão difíceis, e ao mesmo tempo refletir como a amizade transforma vidas, recomendo assistir o lindo filme francês – “Um banho de vida” (2018),  dirigido por Gilles Lellouche e disponível no Netflix. Este filme conta a história de Bertrand, um homem que está no “auge” dos quarenta anos, mas se encontra  deprimido. Essa situação acaba levando-o a ser desligado do seu emprego. Apesar de não gostar do trabalho, o fato de ficar desempregado afeta ainda mais seu quadro, ficando cada vez mais solitário em sua casa, entretanto, tudo isto começa a dar uma reviravolta quando ele decide ir a aula de nado sincronizado, mesmo sem saber nadar. Vai disposto a tentar fazer alguma coisa que ache interessante na sua vida, e é assim que ele conhece o grupo de nado de homens de sua idade, também com os mais diversos problemas, além da professora, uma grande atleta, que monta o grupo para ajudar e manter viva a sua relação com o esporte que tanto ama, porém, que lhe deixou marcas e perdas ainda não elaboradas.

O filme mostra como Bertrand, ao conhecer outras pessoas que compartilham as suas dificuldades, além de descobrir uma atividade prazerosa, redescobre a amizade e as suas diversas capacidades de apoiar, cuidar e amar novamente.

O famoso psicanalista Winnicott (1958) abordou a amizade como sendo uma das experiências altamente satisfatórias, tal como ir ao cinema, escutar música, etc. Conforme o autor, os elementos que vão favorecer o estabelecimento destas relações começam desde os primeiros anos de vida da criança, cuja aprendizagem se dará na na relação com a mãe. Aos poucos, a criança começa a diferenciar o que é o eu e o outro, aprende que a mãe não é uma extensão de seu corpo, mas sim, um objeto amoroso externo.

Além disso, é na infância que começamos a desenvolver a relação de confiança no ambiente, experiência essa que favorece a segurança para externalizar as emoções, a impulsividade, a agressividade. Isso começa quando o bebê percebe que seus pais resistem aos seus atos impulsivos (de morder o seio, de arranhar, movimentar o corpo para expressar seu incômodo, o choro desesperado de dor) com calma, mostrando que precisa ter cuidado para não machucar a mamãe e o papai, usando uma comunicação que mostra a preocupação com ele e que aquilo passa e a relação sobrevive.

Dessa forma, a criança pode integrar seus impulsos agressivos percebendo que é possível restaurar algo, que esse algo permanece. Ela poderá dessa forma sentir raiva e frustração com o objeto amado, e isto não significa a sua destruição e a sua perda.

Logo, para desenvolver a relação de amizade precisamos conseguir lidar com os conflitos que surgem de forma a conseguir suportar as intensidades a partir da expressão de nossos desconfortos e escutando os desconfortos que provocamos nos outros, em alguns momentos.

Diferente das relações de coleguismos, as amizades são livres, pois não temos a obrigação de investir, mas fazemos por interesse genuíno. A amizade também contempla uma reciprocidade e um espaço para que possamos colocar nossa criatividade e espontaneidade.

Para que a amizade possa existir é fundamental sermos capazes de reconhecer a diferença do outro, ter empatia, desenvolver uma intimidade e o “concernimento, para impedir que as frustrações e raivas, inevitáveis aniquilem o vínculo construído” (Lejarraga ,2010, p.97).

Em tempos de pandemia, cujos encontros ainda estão restritos, manter a atitude de continuar regando a planta da amizade e preparar o terreno para novas sementes pode contribuir paranovas experiências, aprendizados e, claro, para favorecer a saúde mental.  

 

Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, com mestrado em Psicologia Social e Especialização Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP.

E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com

 

Biografia:

WINNICOTT.  D. (1990).   A psicanálise do sentimento de culpa. In (1990/1965b), O ambiente e os processos de maturação.

LEJARRAGA, A.L. (2010) A noção de amizade em Freud e Winnicott. Nat. hum.,  São Paulo ,  v. 12, n. 1, p. 1-20. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302010000100003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  01  ago.  2021.

¹DE CASTRO (2021).  Fratus pensou em ‘sumir da face da terra’ e foi salvo pelo amor ante do bronze nas Olimpíadas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2021/08/fratus-pensou-em-sumir-da-face-da-terra-e-foi-salvo-pelo-amor-antes-do-bronze-nas-olimpiadas.shtml

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