"Em tempos de pandemia, cujos encontros ainda estão restritos, manter a atitude de continuar regando a planta da amizade e preparar o terreno para novas sementes pode contribuir paranovas experiências, aprendizados e, claro, para favorecer a saúde mental."
No dia anterior a esta
vitória de Fratus foi comemorado o dia do amigo. Ao tomar conhecimento da
existência desse dia do amigo, fiquei espantada ao perceber que eu nunca
comemorei essa data com meus amigos, mas ao ouvir uma pessoa falando sobre sua
comemoração, pensei sobre como é importante ter uma data de celebração desta
relação potencializadora que transforma vidas.
Para dar um banho de esperança
nestes tempos tão difíceis, e ao mesmo tempo refletir como a amizade transforma
vidas, recomendo assistir o lindo filme francês – “Um banho de vida”
(2018), dirigido por Gilles
Lellouche e disponível no Netflix. Este filme conta a história de
Bertrand, um homem que está no “auge” dos quarenta anos, mas se encontra deprimido. Essa situação acaba levando-o a
ser desligado do seu emprego. Apesar de não gostar do trabalho, o fato de ficar
desempregado afeta ainda mais seu quadro, ficando cada vez mais solitário em
sua casa, entretanto, tudo isto começa a dar uma reviravolta quando ele decide
ir a aula de nado sincronizado, mesmo sem saber nadar. Vai disposto a tentar
fazer alguma coisa que ache interessante na sua vida, e é assim que ele conhece
o grupo de nado de homens de sua idade, também com os mais diversos problemas,
além da professora, uma grande atleta, que monta o grupo para ajudar e manter
viva a sua relação com o esporte que tanto ama, porém, que lhe deixou marcas e
perdas ainda não elaboradas.
O filme mostra como Bertrand, ao conhecer outras
pessoas que compartilham as suas dificuldades, além de descobrir uma atividade
prazerosa, redescobre a amizade e as suas diversas capacidades de apoiar,
cuidar e amar novamente.
O famoso psicanalista Winnicott
(1958) abordou a amizade como sendo uma das experiências altamente satisfatórias,
tal como ir ao cinema, escutar música, etc. Conforme o autor, os elementos que
vão favorecer o estabelecimento destas relações começam desde os primeiros anos
de vida da criança, cuja aprendizagem se dará na na relação com a mãe. Aos
poucos, a criança começa a diferenciar o que é o eu e o outro, aprende que a
mãe não é uma extensão de seu corpo, mas sim, um objeto amoroso externo.
Além disso, é na infância
que começamos a desenvolver a relação de confiança no ambiente, experiência
essa que favorece a segurança para externalizar as emoções, a impulsividade, a
agressividade. Isso começa quando o bebê percebe que seus pais resistem aos
seus atos impulsivos (de morder o seio, de arranhar, movimentar o corpo para
expressar seu incômodo, o choro desesperado de dor) com calma, mostrando que precisa
ter cuidado para não machucar a mamãe e o papai, usando uma comunicação que
mostra a preocupação com ele e que aquilo passa e a relação sobrevive.
Dessa forma, a criança
pode integrar seus impulsos agressivos percebendo que é possível restaurar
algo, que esse algo permanece. Ela poderá dessa forma sentir raiva e frustração
com o objeto amado, e isto não significa a sua destruição e a sua perda.
Logo, para desenvolver a
relação de amizade precisamos conseguir lidar com os conflitos que surgem de
forma a conseguir suportar as intensidades a partir da expressão de nossos
desconfortos e escutando os desconfortos que provocamos nos outros, em alguns
momentos.
Diferente das relações de
coleguismos, as amizades são livres, pois não temos a obrigação de investir,
mas fazemos por interesse genuíno. A amizade também contempla uma reciprocidade
e um espaço para que possamos colocar nossa criatividade e espontaneidade.
Para que a amizade possa
existir é fundamental sermos capazes de reconhecer a diferença do outro, ter
empatia, desenvolver uma intimidade e o “concernimento, para impedir que as
frustrações e raivas, inevitáveis aniquilem o vínculo construído” (Lejarraga ,2010,
p.97).
Em tempos de pandemia,
cujos encontros ainda estão restritos, manter a atitude de continuar regando a
planta da amizade e preparar o terreno para novas sementes pode contribuir paranovas
experiências, aprendizados e, claro, para favorecer a saúde mental.
Michele
Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, com
mestrado em Psicologia Social e Especialização Clínica em Psicanálise e
Linguagem pela PUC-SP.
E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com
Biografia:
WINNICOTT.
D. (1990). A psicanálise do
sentimento de culpa. In (1990/1965b), O ambiente e os processos de
maturação.
LEJARRAGA, A.L. (2010) A
noção de amizade em Freud e Winnicott. Nat. hum., São Paulo
, v. 12, n. 1, p. 1-20. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302010000100003&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 01 ago. 2021.
¹DE CASTRO (2021). Fratus pensou em ‘sumir da face da terra’ e foi salvo pelo amor ante do bronze nas Olimpíadas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2021/08/fratus-pensou-em-sumir-da-face-da-terra-e-foi-salvo-pelo-amor-antes-do-bronze-nas-olimpiadas.shtml