"Não sei dizer se real ou fantasiosa, mas sei que não tinha outra saída – tinha que escrever sobre isso."
Ultimamente tenho me concentrado
em meus afazeres diários – atendimentos, estudos, aulas – e não estava
conseguindo parar e pensar sobre o que poderia escrever neste espaço. Surgiu-me
uma ideia que parecia interessante. Depois da última coluna (‘Brincando com as palavras’, se não leu ainda, corre lá) fiquei tentado em continuar com o jogo
das palavras. Mesmo que não escolhesse uma única palavra que possa escrever
sobre ela, não deixa de ser uma brincadeira com as letras.
A verdade é que nada me apareceu,
então fui buscar uma ajuda. Convidei nada menos do que Fernando Pessoa. Sim,
ele mesmo. Apareceu-me em imaginação e me disse, logo de cara, perguntando qual
seria a dificuldade. Respondi prontamente (minha mente não estava nada pronta)
que para ele não deve ser um problema, já que nas suas produções teria escrito até
morto (Fernando Pessoa tem ao menos 10 obras póstumas). Sorriu e disse: - “não
sabe o que escrever? Esses escritores amadores (que amam as dores?) me chamam a
todo o momento. Toda semana aparece um ou outro que não se decide por quais letras
querem pintar seu mundo da imaginação”.
A prosa se alongou. Falamos das últimas
e ele se espantou. Nunca imaginou que estaríamos passando por mais uma
pandemia. Nem quis saber quando eu disse que dos nossos países irmãos, o Brasil
é o que mais se saiu mal na luta contra o vírus.
Quando, depois de um tempo, me
perguntou se já teria encontrado um tema para escrever, eis que me aparece uma
ideia: que tal falar de uma vida que não tive?, perguntei. “Como”?,
Fernando rebateu. “Se você não teve, como poderá contar algo que não
experimentou?” Eu que lhe pergunto, oras. Você que escreveu sobre as inúmeras
possibilidades de viver a vida, se fez até se passar por outras pessoas para
contar uma história, de que forma eu poderia também fazer isso? “Não vejo saída”,
me respondeu. Fernando deu as costas e foi embora sem antes me deixar um
bilhete todo amassado contendo uma parte de uma poesia que estava assinado por
um tal de “Álvaro de Campos”. Talvez ele não tenha gostado da minha ideia, ou
talvez percebesse que não poderia me ajudar. Normalmente os bons escritores
gostam mesmo é de contar histórias e não ensiná-las como contar.
Sem me perder no trajeto comecei
a ler o que estava escrito no bilhete. Assim dizia: “Temos todos duas vidas: A
verdadeira, que é a que sonhamos na infância, E que continuamos sonhando,
adultos, num substrato [de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência
com outros, Que é a prática, a útil, Aquela em que acabam por nos meter num
caixão” (Fernando Pessoa – Quando fui outro, Alfaguara, 2011). Pensei que, no
fundo o meu conselheiro imaginário talvez estivesse me dizendo que podemos ser
o que quisermos, basta ter coragem. Na sua resposta “não vejo saída”, quem sabe
ele não queria me dizer que não há outra forma de viver a vida sendo ‘nós’
mesmos. O ‘nós’ aqui diz respeito a vários ‘eus’, muitas vidas numa mesma
pessoa. A poesia que Fernando me deixou parece afirmar isso quando diz que
“todos temos duas vidas”. Duas que podem se multiplicar por outras e outras.
Voltei para casa com o desejo de
escrever sobre uma vida que não existe, que não passei, uma história que não me
ocorreu. Mas não consegui. Acabei escrevendo sobre uma história verdadeira,
essa, que de fato é real e aconteceu (pelo menos para mim). Não sei dizer se
real ou fantasiosa, mas sei que não tinha outra saída – tinha que escrever
sobre isso.
Obs: Já dizia um grande
psicanalista – “Ser pai é dominar a arte de ser desnecessário”. Boa sorte aos
pais que não desistem de seus ideais e tentam conquistar e se fazerem merecidos
no amor aos filhos.
Daniel Vicente da Silva
Psicólogo e Psicanalista, Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região - NEPS-R.
E-mail: danielvicente_@hotmail.com