Há 150 anos nascia a poetisa Francisca Júlia

Hoje, 31 de agosto, transcorre o sesquicentenário de nascimento da poetisa Francisca Júlia. Considerada a autora que melhor representou os ideais do Parnasianismo no País, foi alçada, ainda em vida, à condição de mais importante poetisa das língua portuguesa.


Francisca Júlia, por volta de 1895.
 Francisca Júlia, por volta de 1895.


Num universo inteiramente dominado por poetas do chamado sexo forte, Francisca Júlia provou que mulher também sabia fazer poesia de qualidade, confeccionando versos perfeitos que em nada ficaram a dever à chamada “trindade parnasiana”: Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de Oliveira, que foram seus admiradores.

 

Desde a infância, Francisca Júlia já demonstrava pendor para a poesia. O ambiente familiar a isso contribuía: o pai, Miguel Luso da Silva, era advogado provisionado, amigo particular dos livros; a mãe, Cecília Isabel da Silva, professora na escola de Xiririca (hoje Eldorado, no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo). Foi nessa aprazível cidade às margens do rio Ribeira de Iguape que, em 31 de agosto de 1871, nasceu Francisca Júlia da Silva. O ano de seu nascimento é um tanto contraditório: 1874 para uns, 1875 para outros. De acordo com o irmão de Francisca, o também escritor Júlio César da Silva (1872-1936), a quem se deve dar crédito, o ano correto é mesmo 1871. (1)

 

Ainda criança, a sua família se transferiu para São Paulo. Já moça feita, Francisca Júlia logo passou a colaborar com os jornais mais importantes da época. Sua estreia deu-se no jornal “O Estado de S. Paulo”, onde publicou os primeiros sonetos. A partir de então, começou a colaborar assiduamente para o “Correio Paulistano” e “Diário Popular”. Colaborou também para jornais do Rio de Janeiro, com destaque para as revistas “O Álbum”, de Arthur Azevedo, e, especialmente, “A Semana”, de Valentim Magalhães.

 

A ESTREIA LITERÁRIA

 

Capa de “Mármores”.
Capa de “Mármores”.

Em 1895, aparece o seu primeiro livro, “Mármores”, reunindo sonetos publicados na “A Semana” de 1893 até aquele ano, edição custeada pelo editor Horácio Belfort Sabino. Prefaciado por João Ribeiro (1860-1934), conceituado crítico literário da época, o livro causou sensação nas rodas culturais de São Paulo e Rio de Janeiro. Olavo Bilac, numa crônica emocionada, destacou: “Em Francisca Júlia surpreendeu-me o respeito da língua portuguesa, não que ela transporte para a sua estrofe brasileira a dura construção clássica: mas a língua doce de Camões, trabalhada pela pena dessa meridional, que traz para a arte escrita todas as suas delicadezas de mulher, toda a sua faceirice de moça, nada perde da sua pureza fidalga de linhas. O português de Francisca Júlia é o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura.” (2)

 

“A Semana” era uma das revistas mais conceituadas que então se editava na Capital Federal. Dirigida por Valentim Magalhães, tinha como redatores ilustres escritores da época: João Ribeiro, Araripe Júnior e Lúcio de Mendonça. A estreia de Francisca Júlia na revista provocou grande alvoroço: os redatores não acreditavam que uma mulher pudesse escrever versos tão perfeitos. Não foi sem razão que João Ribeiro exclamou: “Isto não é verso de mulher! Deve ser uma brincadeira do Raimundo Correa!...” (3)

 

Encantado com esse talento literário que emergia, João Ribeiro prefaciaria o livro “Mármores”. Ombreando-a à trindade parnasiana, Ribeiro escreveu: “Nem aqui, nem no sul nem no norte, onde agora floresce uma escola literária, encontro um nome que se possa opor ao de Francisca Júlia. Todos lhe são positivamente inferiores na estrofe, na composição e fatura do verso, nenhum possui em tal grau o talento de reproduzir as belezas clássicas com essa fria severidade de forma e de epítetos que Heredia e Leconte deram o exemplo na literatura francesa.” (4)

 

João Ribeiro espargiu mais elogios, recordando a estreia da poetisa em “A Semana”: “A sua poesia enérgica, vibrante, trazia a veemência de sonoridades estranhas, nunca ouvidas, uma música nova que as cítaras banais do nosso Olimpo nos haviam desacostumado.” (5)

 

Tanto confete lançado em torno de sua estreia literária parece não ter subido a cabeça da jovem e já consagrada poetisa, então com 24 anos. Ao contrário, cada vez mais incentivada por amigos de peso, dedica-se integralmente à atividade poética, traduzindo para o português versos do poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856).

 

Apesar de parnasiana na forma, Francisca Júlia também teve passagem pelo Simbolismo, introduzido no Brasil nessa última década do século XIX, e também pela poesia mística.

 

A CONSAGRAÇÃO


Francisca Júlia na maturidade, por volta de 1903.
Francisca Júlia na maturidade, por volta de 1903.


Em 1899, juntamente com o irmão Júlio César, Francisca Júlia escreve o “Livro da Infância”, obra didática logo adotada pelo Governo de São Paulo em escolas do primeiro grau.

Seu segundo e último livro de poesias, “Esfinges” aparece em 1903, novamente prefaciado pelo amigo e admirador João Ribeiro, sendo editado por Bentley Júnior & Cia.

A exemplo de “Mármores”, o novo livro foi igualmente aplaudido pela crítica. Aristeu Seixas não poupou elogios: “Nenhuma pena manejada por mão feminina, seja qual for o período que remontemos, jamais esculpiu, em nossa língua, versos que atinjam a perfeição sem par e a beleza estonteante dos concebidos pelo raro gênio da peregrina artista.” (6)

 

Outros poetas famosos não deixaram de manifestar, em crônicas emocionadas, vibrantes elogios à mais nova produção literária de Francisca Júlia, entre eles, Vicente de Carvalho e Coelho Neto.

 

Em 27 de fevereiro de 1909, Francisca Júlia contrai matrimônio com Filadelfo Edmundo Munster, natural de Barra Mansa (RJ), que trabalhava como telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil. A discreta cerimônia, que teve Vicente de Carvalho como padrinho, realizou-se na capela de Lajeado, em São Paulo, atual bairro de Guaianazes.

 

Nessa época, Francisca Júlia foi convidada (e gentilmente recusou) a fazer parte da Academia Paulista de Letras, então em vias de ser fundada. A partir desse ano, decide deixar a poesia de lado e se dedicar apenas ao esposo e ao lar.

 

Alguns anos mais tarde, outra vez em colaboração com o irmão Júlio César, produz o seu último trabalho literário, “Alma Infantil”, editado em 1912 pela Livraria Magalhães.

 

Na segunda década do século XX, Francisca Júlia era uma poetisa consagrada. Aos 46 anos recebe a maior homenagem que lhe prestaram em vida, quando um grupo de admiradores organizou, em 1917, uma sessão literária e ofereceu seu busto à Academia Brasileira de Letras. Era a consagração da talentosa artífice de versos, da “Musa Impassível”, como ficou conhecida devido ao título de seu soneto mais famoso.

 

A MORTE

 

Busto de Francisca Júlia, em Eldorado (SP).
Busto de Francisca Júlia, em Eldorado (SP).

Acometido de tuberculose, após demorado tratamento, Filadelfo Munster falece em 31 de outubro de 1920. A perda do companheiro tão amado foi arrasadora para a sensível poetisa, cuja emoção não pode conter, em nada demonstrando ser a autora daqueles versos frios, impassíveis, marmóreos. Confessou aos amigos que a sua vida não tinha mais sentido sem a companhia do marido, e deixou claro que “jamais poria o véu de viúva”.

 

Muitas lendas e fantasias se criaram sobre a sua morte: que teria se suicidado ingerindo narcóticos, que teria falecido sobre o caixão do esposo etc. Segundo apurou o crítico literário Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992) junto a testemunhas oculares, no dia da morte do esposo Francisca Júlia retirou-se para repousar em seu quarto e não mais acordou, apesar dos esforços médicos para reanimá-la. Seu corpo foi sepultado no Cemitério do Araçá, em São Paulo, ao meio-dia de 2 de novembro de 1920, com a presença dos futuros modernistas Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Victor Brecheret, entre outros.

 

O deputado estadual Freitas Vale apresentou proposta para a construção de um mausoléu em memória da poetisa, que seria construído em 1923, no governo de Washington Luiz, então presidente do Estado de São Paulo. Sobre essa escultura, as palavras de Menotti del Picchia dizem tudo: “A estátua que se ergue hoje no cemitério do Araçá, a Musa Impassível, é um mármore criado pelo cinzel triunfal de Victor Brecheret. Na augusta expressão dos seus olhos, do seu busto ereto, das suas mãos rítmicas, há toda a grandeza e a beleza daquela musa impassível da formidável parnasiana que concebeu e realizou a 'Danças das Centauras'. O estatuário é bem digno da poetisa.” (7)

 

Escultura da “Musa Impassível”, na Pinacoteca do Estado.
Escultura da “Musa Impassível”, na Pinacoteca do Estado.

A estátua foi transferida para a Pinacoteca do Estado em 2006, sendo colocada em seu túmulo, no Cemitério do Araçá, uma réplica em bronze.

 

Nos últimos anos, a vida e a obra de Francisca Júlia vêm sendo reabilitadas por pesquisadores de todo o País, com a publicação de teses e dissertações acadêmicas. Em 2008, Marcia Camargos lançou “Musa Impassível - A poetisa Francisca Júlia no cinzel de Victor Brecheret” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo). E em 2020, cento e vinte e cinco anos após a publicação da edição original, o Senado Federal reeditou “Mármores”, quarto volume da Coleção Escritoras do Brasil.

 

Francisca Júlia vive.


NOTAS

 

(1) O poeta João Mendes (1918-1997), de Eldorado (SP), que pesquisou exaustivamente a vida e a obra de Francisca Júlia (fundando, inclusive, uma academia de letras na cidade em homenagem à poetisa) afiança: “Efetivamente ela nasceu em 31 de agosto de 1871 e não 1874. O documento que temos para essa afirmação não comporta dúvidas. É a certidão de seu batismo colhida no arquivo paroquial.” (in “A Tribuna do Ribeira”, de 14/11/1981, pág. 2).

 

(2) “Francisca Júlia da Silva, Breve Evocativo do Seu Centenário, 1871-1971”, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1972, pág. 5.

 

(3) Idem, págs. 3 e 4.

 

(4) Ibidem, pág. 5.

 

(5) Ibidem, pág. 5.

 

(6) Ibidem, pág. 6.

 

(7) “Poesias”, de Francisca Júlia, Comissão Estadual de Cultura, com introdução e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo, 1962.



MUSA IMPASSÍVEL


Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero

Luto jamais te afeie o cândido semblante!

Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante

De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.


Em teus olhos não quero a lágrima; não quero

Em tua boca o suave e idílico descante.

Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,

Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.


Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;

A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,

Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;


Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,

Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,

Ora o surdo rumor de mármores partidos.

                 

 

                  DANÇA DE CENTAURAS

 

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,

Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,

Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças

Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

 

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;

Mil centauras a rir, em lutas e torneios,

Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios

De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

 

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...

A dança hípica pára e logo atroa o espaço

O galope infernal das centauras em fuga:

 

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,

Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço

Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

 

 

ROBERTO FORTES,

ROBERTO FORTES, escritor, poeta e jornalista, é autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (Inteligência Editora, 2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. É sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br

 

 

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