Coluna de Setembro

10 de setembro, dia mundial de prevenção ao suicídio. "Falar é a melhor solução" mas… eu consigo escutar? E o que eu faço com a minha angústia e desespero frente à dor do outro?

Coluna de Setembro

A casa onde moro tem uma jabuticabeira linda, na qual os pássaros aproveitam as frutas muitas vezes mais do que eu. Ouvi-los cantar todos os dias era uma sensação maravilhosa. Até o dia em que descobri que um dos cantos que eu ouvia, na verdade, era de um pássaro que um vizinho mantém engaiolado. Entrei em desespero. Como pode alguém colocar um pássaro em uma gaiola sem a menor necessidade? Tantos outros pássaros na jabuticabeira, por que um deles está engaiolado?


Minha primeira reação foi querer chamar o vizinho pra conversar. Mas… lembrei que também tenho um peixe num aquário. Seria eu "melhor" que ele? 

"Vou chamar a polícia ambiental!" Mas… pesquisei, e não é proibido manter essa espécie engaiolada. Sem saber o que fazer, ouço o canto todos os dias. Já consigo identificá-lo, em meio aos outros, e todas as vezes que ele canta, machuca-me. Minha cabeça passou então a inventar histórias para suportar o sofrimento: talvez esse pássaro não consiga voar, não sobreviveria livre. Talvez meu vizinho esteja fazendo uma boa ação. Talvez…


Trago aqui o relato de F.*, 15 anos. “É de noite, já estou a postos para adormecer. Eis que surge uma mensagem. Na primeira vez fiquei desesperado, não sabia o que fazer, afinal, não sou um profissional. Lembro das palestras, como devo aconselhar alguém a ligar no 188 sem parecer que eu quero cortar a conversa? ”Fale com seus pais”... mas ele não quer. Tenho medo que ele faça alguma besteira. Fico vigilante, envio mensagem pela manhã. Está tudo bem, que alívio. Alguns dias depois, as mesmas mensagens. Já não sei mais o que dizer, não sei mais como consolar. Decido desativar as notificações. Não sei o que fazer.” F.  sente-se impotente, e a impotência gera uma frustração que repudia com agressividade. “Se cuida, procure ajuda profissional”.


Existem dois conceitos caros à humanidade: a vida e a liberdade. Os métodos de punição utilizam-se da retirada de um desses dois conceitos: o regime de cárcere privado, o regime semi-aberto, a pena capital (ou pena de morte). Ao mesmo tempo, enfatizamos o discurso que valoriza a vida como um direito inalienável: a proibição do aborto, da eutanásia, do suicídio. Uma das discussões realizadas sobre a valorização da vida é "de qual vida estamos falando?". Responder a essa pergunta com "todas", sem um debate sobre as questões que levam ao aborto, à eutanásia e ao suicídio, silencia o sofrimento e não colabora para mitigar as suas causas.


Vivemos aprisionados: ao trabalho, aos nossos desejos, às redes sociais onde as pessoas expõem as suas vitrines, numa relação de consumo. Na metáfora do pássaro engaiolado, somos pássaro, somos gaiola, somos vizinho, somos sociedade que corrobora com o aprisionamento dos animais, das pessoas, dos desejos. E o que nos mantém vivos?


Aproveitando o centenário de Paulo Freire, esperançar é o que nos mantém vivos.  A esperança de que não apenas o viver seja possibilitado, mas o existir decorrente da liberdade, liberdade esta possibilitada por uma sociedade pautada nos direitos humanos. A Educação encontra-se na base do esperançar: se a educação muda as pessoas, se acreditamos que é possível ensinar a amar e a respeitar ao próximo e à natureza, acredito sim que cada vez menos vizinhos colocarão pássaros em gaiolas e provocarão tamanho sofrimento. Acredito sim que menos crianças e adolescentes sofrerão se caminharmos numa sociedade que preza pelo combate à barbárie e ao preconceito, e que tenha as escolas como espaços primordiais de diálogo e desenvolvimento de um raciocínio crítico que questione as estruturas que provocam grande parte do sofrimento.


Carla Cristina Kawanami, CRP 06/96109, é psicóloga escolar do Instituto Federal São Paulo (IFSP) campus Registro, graduada pela USP e Mestre em Educação: Psicologia da Educação pela PUC SP.

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(Direitos Reservados. A Autora autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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