A ambivalência de sentimentos O amor e o ódio pela mesma pessoa

Não é raro encontrarmos adultos que buscam a qualquer custo não acessar os sentimentos de decepção e ódio, com a ideia de que estes sentimentos negativos devem ser evitados, pois é ruim senti-los, principalmente se este sentimento está dirigido a uma pessoa querida (pais, filhos, companheiros, amigos etc.).  

Na psicanálise, aprendemos que falar sobre o que sentimos nos permite, aos poucos, compreender nossos conflitos e, consequentemente, a origem de nossos sintomas, possibilitando enfrentar esses conflitos de outras formas.

Para exemplificar, vamos imaginar uma pessoa que chega ao consultório indignada por não parar de sentir um ódio intenso pela sua profissão: “antes eu amava tudo, mas, agora, do nada, não suporto e odeio tudo que faço”. Ela também relata: “que odeia com todas as forças um colega que não vai com a cara, acha que tem algo ruim, mas não sabe explicar”. Quando tem a oportunidade, em terapia, de falar sobre esse ódio, ela nota que odeia a forma do colega gerir e desqualificar as pessoas, tal como seu irmão que a faz experenciar esses sentimentos e, neste momento, ela passa a compreender o motivo que a incomoda tanto. Neste caso,  a situação desconfortável com colega atualizou um sentimento hostil pelo irmão que lhe ajuda e, ao mesmo tempo, desqualifica tudo que faz.

Para Freud, o amor é uma condição para o ódio reprimido, e por ser da esfera do amor as pessoas têm dificuldade de reconhecer quando sentem raiva de outra pessoa ou quando ficam muito decepcionadas. Esses sentimentos acabam sendo reprimidos pela pessoa e são deslocados. Por exemplo, podem apresentar ideias obsessivas diversas, como falar coisas que machucam outras pessoas de forma descontrolada, impulsiva, ou mesmo o desejo de se machucar, de sentir muita raiva contra si, entre outros inúmeros sintomas.

Freud nos mostrou que sentimentos muito fortes podem ser reprimidos, ou seja, a pessoa pode ter sentimentos intensos (ódio, nojo, amor) em algumas situações, mas esses sentimentos podem ser deslocados para coisas que inicialmente não fazem sentido. O ódio a uma profissão que sempre gostou muito e “do nada” passou a odiar tudo ligado a ela. A compreensão pode levar a acessar outros sentimentos e favorecer decisões reflexivas. Neste caso, a pessoa quase abandonou sua profissão para não ter mais contato com uma atitude ríspida do colega e com a inflexibilidade da organização, mas, com o tempo, pôde ressignificar sua carreira e compreender o que odiava em tudo isso.

Estes sentimentos ambivalentes têm sua origem nas primeiras relações da criança com seus pais. O psicanalista Winnicott fala do primeiro objeto de amor, que é a mãe, e que a criança desenvolve uma relação em que vê na mãe um objeto bom e, simultaneamente, um objeto de destruição, ou seja, um objeto que ao longo do tempo a criança passa a perceber que deseja e odeia. É a partir da capacidade da mãe de conseguir sustentar a agressividade pulsional da criança que ela poderá desenvolver as bases para o envolvimento com a mãe, que será seu primeiro objeto de amor.

Para Winnicott, o envolvimento refere-se à capacidade do indivíduo em se preocupar ou se importar com o outro, a ponto de sentir e aceitar com responsabilidade. As bases disso passam por ter tido uma referência de acolhimento dos impulsos agressivos, até os momentos em que a criança passa a ter o suporte do adulto para lidar com a sua agressividade, tendo um contorno para expressar. Para Winnicott (1963), esse desejo de destruir, inerente a agressividade, é algo que “cabe ao adulto impedir que a agressão fuja do controle, para isso, precisa ter uma autoridade confiante, com limites para essa agressividade que pode ser dramatizada”.

A ambivalência de sentimentos O amor e o ódio pela mesma pessoa


Uma a forma de favorecer a expressão dessa agressividade dentro de alguns limites são os jogos, as brincadeiras, o trabalho e a arte, pois nos dão espaço para colocar a agressividade, assim como acessar remorsos inconsciente por ter destruído algo podendo articular de forma inconsciente a possibilidade começar a corrigir as coisas.

Para finalizar, vale reforçar: uma vez que não temos como escapar desses sentimentos ambivalentes, afinal eles são fundamentais, então, que possamos reconhecer e encontrar uma forma de colocá-los para fora, de expressá-los num ambiente acolhedor, considerando nossas relações e as diversas formas de expressar.


Escrito por Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com

Referências:

FREUD, S. (1909/ 2013). Observações sobre um caso de neurose obsessiva (O Homem do Ratos). In: Obras Completas de Freud (Vol. 9). São Paulo: Companhia das Letras.

WINNICOTT,  D.  W. ( 1963/ 2002) O desenvolvimento da capacidade de envolvimento. In: Privação e  delinquência.  3.  ed. São  Paulo:  Martins  Fontes.

 

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