"A música tem a delicadeza de marcar momentos e nos fazer voltar no tempo. Assim como um bom perfume, a música nos leva a acessar nossas lembranças"
Dias atrás estava deitado no sofá de casa e resolvi, assim por acaso a pegar um bom headphone (fone de ouvido) e colocar na primeira música que aparecesse na ‘playlist’ disponível. Sem me recordar do nome, as primeiras notas do piano soaram como uma paisagem a minha frente, uma espécie de miragem em que ondas do mar, tranquilas, de uma água leve e cor de um azul anil, de uma areia espessa e alguns pássaros no horizonte finalizavam o quadro imaginário. Enquanto as notas do piano iam ressoando em meus ouvidos pude, ausente em mim mesmo, numa lógica de ‘teletransporte’, desfrutar da paisagem serena e distante. Não escutava mais a música. Não sabia onde estava. Com certeza na sala de casa, deitado no sofá com fone de ouvidos não era.
Essa experiência extremamente
sensível me fez pensar no poder da arte e em especial na música. Notas soltas,
acordes, harmonias e sonoridades, suavidade e agressividade – todo esse
conjunto pode realmente nos desvirtuar de nosso ‘eu’ consciente e nos levar
para lugares muito distantes e ao mesmo tempo impossíveis. Tá aí uma
advertência interessante. Lugares ‘impossíveis’. Impossíveis por que se de
fato me localizar fisicamente numa praia com todos esses adereços que tive a
sensação de sentir quando escutava a música, acho que não conseguiria ter a
condição de perceber todas essas sensações.
Uma vez, numa conversa com um
grande amigo que se dispôs a me ensinar algo sobre a música clássica – ele me
deu algumas aulas sobre orquestras e composições – disse que ‘a música é como
um exercício ético, que quando escutamos temos a sensação de desejar fazer o
bem’. O bem que ela nos faz sentir talvez seja em decorrência de sua capacidade
transbordante. Esse transbordamento nos impele a “passar para frente” algo que
sentimos. Não é atoa que gostamos de indicar, quando se trata de uma boa
melodia, aos amigos e pessoas queridas. Quando estamos alegres gostamos de
escutar ‘aquela música’ que marcou, seja sozinho ou acompanhado.
A música tem a delicadeza de
marcar momentos e nos fazer voltar no tempo. Assim como um bom perfume, a
música nos leva a acessar nossas lembranças, com pessoas e lugares que jamais
acessaríamos se não fosse através daquela associação com ela. O passado se
torna tão perto que temos a sensação de que ele nunca se afastou. A nitidez do
regalo é algo tão vivo que nos surpreendemos com sua proximidade. Seja na
adolescência, na infância, seja em tempos mais curtos somos pegos de supetão
por algo que até então não era recordado.
Ela também nos trás sentimentos
até então esquecidos. Um tempo que não volta mais, um amor apagado ou aquela
pessoa que foi (e será) sempre bem quista pode aparecer sem que sintamos vontade.
Freud nos disse que as “lembranças encobridoras” são pequenas lembranças sem
muito sentido, insignificantes, que encobrem outras mais significativas. A impressão que tenho é que a música
possibilita esse atravessamento dessa barreira. A alegria, assim como a
tristeza pulsa sem que tenhamos controle.
A música está presente em
incontáveis momentos da nossa vida. Numa faxina em nossa casa colocamos a
música para nos impulsionar naquela atividade. No esporte, para nos dar ‘gás’
para realizar os exercícios. Dentro do carro, no trânsito pode ser uma ótima
companhia. Para enfrentar um obstáculo na vida tentamos escutar aquela música
que poderia ‘motivar’ a passar por aquela dificuldade. O que seria do cinema
sem a música? Muitas vezes gostamos daquela cena do filme por conta da sua
trilha sonora e nem nos damos conta de que sem ela a cena perderia seu encanto.
Os sons e sua beleza fazem com que uma peça de teatro possa ser marcada para
sempre em um espectador sem que ele se recorde da música, mas sim da cena
imaginada.
Daniel Vicente da Silva
Psicanalista e Psicólogo, Membro
Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.
E-mail: danielvicente_@hotmail.com