Gosto de olhar as pessoas andando durante o dia. Às vezes paro e fico tentando imaginar qual seria a vida de determinado individuo que estou visualizando naquele momento. O que ele faz no seu dia-a-dia, qual seu trabalho (se tem algum), se mora sozinho ou com outros tantos, se tem filhos, se dorme a noite ou fica acordado, gosta de arroz com farinha no café da manhã ou apenas um cafezinho. É tanta diversidade que dá para passar o dia imaginando. Conheci pessoas que adoram morar nos prédios das grandes metrópoles e alguns até tem guardado um binóculo em casa para acompanharem a vida alheia (isso tem nome, trata-se do voyeurismo ou escopofilia – ‘prazer do olhar’ como ponto principal na sua vida em fantasia). A linha que diferencia o prazer pela apreciação do olhar patológico (o prazer na vida desses sujeitos viria somente através do olhar) é muito fina, a ponto de confundirmos os lados. O objetivo na escopofilia seria obter prazer sexual olhando (em atos sexuais e ou na intimidade das pessoas) sem envolvimento com a pessoa observada.
A tecnologia facilitou muito a
vida dos voyeur. Diria mais. O mundo atual é pintado totalmente num clima
voyeur. As redes sociais nos disponibilizam uma quantidade enorme de imagens da
vida dos outros. Muitas vezes é muito fácil acompanhar a vida intima das
pessoas. Exposições de celebridades e até mesmo de histórias desconhecidas. O
programa de tv chamado ‘Big Brother Brasil’ (nomeia-se Big Brother ‘Brasil’ porque
há outros países que também tem o mesmo programa em seus canais de televisão)
faz tanto sucesso e está na sua não sei qual temporada talvez porque tenhamos
uma grande quantidade de voyeurs entre nós e não nos damos conta, ainda.
Mas para que existam os que
gostem de olhar é notável que tenham os que sintam se bem em se exibirem. Os
chamados ‘exibicionistas’ sentem certo prazer em se exibir. Forma-se um jogo
interessante entre aqueles que olham e os que se mostram. Podem fazer par
dentro desse jogo, se complementar, mas nem sempre a separação é tão fácil
assim. Muitas vezes o sujeito que gosta de olhar também sente o desejo de ser
visto. A conta não fecha (nunca fechou, somente para os matemáticos já dizia
minha avó) a ponto de conseguirmos separar a sociedade em exibicionistas e
voyeuristas.
Há outros fatores que contribuem
para que não seja tão simples assim o modo de separação entre olhar e ser
olhado. Guy Debord (1931 – 1994) escritor francês tem um livro chamado “A
sociedade do espetáculo”. O livro foi publicado no ano de 1967. Trata-se de uma
crítica bastante interessante sobre o consumo e a própria sociedade que teria
no seu bojo uma tamanha compulsão pelo espetáculo. Atenção, o livro de Debord
foi publicado antes do surgimento do espaço virtual interligando os
computadores. A internet foi criada em 1969 no EUA, em 1982 foi somente para
uso acadêmico e somente 1987 foi liberado para uso comercial naquele país. Não
há relação entre uma sociedade vislumbrada na imagem, na exposição e no
espetáculo de seus corpos e o uso da internet, pelo menos servindo como causa.
De volta aos fatores que não
facilitam separar entre os que olham e os que são olhados, Debord conseguiu nos
mostrar que a “Sociedade do espetáculo” discorre sobre uma realidade que apenas
pode ser transmitida através da imagem. Ou seja, que as relações sociais seriam
mediadas pela imagem. Por tanto, diante do nascimento de uma criança é esperado
que os pais (aqueles que publicam fotos desse momento) exponham as mais alegres
e sorridentes e não as de dores e dificuldades. Uma nova realidade aqui vai
sendo gestada. Ou seja, além de demonstrar o prazer de expor, o exibicionismo (o
que não denota uma patologia aqui, que fique bem claro) depende do olhar dos
outros para que aquele momento seja de fato real. Há pessoas que relatam que só
após ‘postarem’ uma fotografia nas redes sociais e receberem as ‘curtidas’ se
dá conta de que vivenciou aquela experiência. A valorização da dimensão da
imagem desenvolve uma espécie de ‘consumidores visuais’ em que a realidade
passa a ser questionada, se é de fato aquela vivida no momento do parto ou
aquela após as fotos estarem disponíveis para os olhares.
De qualquer forma o prazer pelo
olhar e pela exibição sempre existiu. O que de fato aconteceu através da tecnologia
e da internet foi facilitar a vida de exibidores e olheiros. A novidade talvez
seja a dos vigilantes, aqueles sujeitos que tentam uma neutralidade nessa
guerra das imagens, mas que por conta da força exercida pelo imaginário dentro
de nossa sociedade atual não conseguem se conter de um julgamento moral. A isso
só demonstra o domínio e poder que as imagens exercem sobre nós.
DEBORD, G. Sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
Daniel Vicente da Silva
Psicanalista e Psicólogo, Membro
Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.
E-mail:
danielvicente_@hotmail.com