Dias desses uma pessoa me contou, ajudando a me lembrar de fatos que não tem ligação com a pessoa do conto, que conhece um homem que vive há muito sem não sequer ter relação com uma vida cotidiana. Narra essa história e depois me pergunta se é possível viver assim, dessa forma. Ele se referia a uma vida pouco comum, de alguém que frequenta lugares visitados por todos – um salão de cabeleireiro, uma barbearia, um velório, uma banca de jornal – mas que não tem ligação com tais lugares. É como se esse sujeito fosse até esses lugares, mas não tivesse ‘nada’ para fazer por lá. Em um desses comentários o contador dessa história me fala estarrecido “parece louco!”. A única coisa que pude dizer para ele, no momento, é que gostaria de conhecê-lo pessoalmente. Aflito, virou e disse: - “só pode, não é atoa que você é psicólogo”.
Os fatos que recordei com esse diálogo tem que ver com tipos de pessoas que não levam uma vida ‘ordinária’ e que por conta disso chamam a atenção da grande maioria. É muito comum, nas cidades do interior, municípios menores do que as grandes metrópoles, personagens com modelo de vida extravagantes serem lembrados pela população com apelidos ‘familiares’. ‘Italiano da laranja’, ‘homem da bicicleta’, ‘velho do saco’, ‘Fofão’ e companhia. A criatividade para nomear essas pessoas e as inverdades associadas à suas vidas muitas vezes ultrapassam e vão além da história real. Pouco se sabe, mas muito se transforma nas fábulas que narram a existência dessas pessoas.
Dois aspectos que me chamam à atenção. O primeiro diz respeito ao estilo de vida que essas pessoas ‘escolheram’ e como esse estilo muitas vezes é percebido com preconceito. Frequentemente mesmo aparecendo como personagens excêntricos em uma comunidade ou município essas pessoas levam uma vida cada vez mais anônima. Se aproximar delas, dialogar, leva-las a sério pode surtir um efeito de afastamento, de preconceito para quem não quer ser visto ‘como fazendo parte’ desse modelo de existir. ‘O que acharão de mim’ pode surgir na fantasia de quem se preocupa em preservar sua história. O “diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és” pesa nessas horas da aparência social. Não podemos ser comparados com uma pessoa ‘desregrada’, já que eu me esforço dia após dia para me manter dentro dos padrões.
O outro aspecto diz respeito a certa ‘curiosidade’ pela vida totalmente diferente da minha; andar sem rumo, deixar que a vontade lhe conduza sem nenhum marcador cronológico que lhe mostre a existência do tempo; poder ser você mesmo (dentro e fora de casa) não precisando usar ‘mascaras’ (no sentido figurativo, como uma espécie de disfarce que utilizo em diferentes situações) para conviver em sociedade, são algumas das características que esses personagens tem e portanto devem causar uma certa inveja à aqueles que lhes tratam com doses de violência.
Há uma verdade que aprendemos no trabalho como psicoterapeutas que diz que quando alguém se incomoda com algo alheio a sua vida (um estilo de vida hedonista; um jeito de ser mais ‘popular’ de uma pessoa; a orientação sexual) é porque isso se trata de um conflito interno. Algo de fora, externo não me atingiria tão profundamente se não tiver com que fazer ligação com algo meu. Ou seja, eu só me incomodo com a vida sexual do outro, por exemplo, se de fato o jeito que ele busca realizar os prazeres em sua vida tem que ver com o jeito que eu reprimo esses prazeres em mim.
Já dizia o saber popular que ‘a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios’. O que talvez esses personagens excêntricos causem em nós expectadores é o fato de que precisamos resistir sempre da vontade de ter uma experiência livre, longe dos padrões comportamentais esperados pela sociedade.
Para viver em sociedade renunciamos ao nosso próprio narcisismo (narcisismo aqui utilizado como parte do nosso desenvolvimento humano saudável, ou seja, investimento precoce de toda a energia possível em mim mesmo, como no caso das crianças) e assim podemos fazer parte da convivência com os outros. Por conta dessa renúncia, sabemos que o narcisismo de uma pessoa exerce grande atração sobre todos nós. É bem provável que o narcisismo desses personagens que sabem manter longe de seu ‘eu’ tudo o que poderia diminuí-lo e levam uma vida extravagante nos causem bastante desconforto por conta da renúncia ao pleno exercício do nosso próprio pedantismo.
Daniel Vicente da Silva
Psicanalista e Psicólogo clínico, Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.
E-mail: danielvicente_@hotmail.com
A arte de viver parece existir nas formas mais extravagantes |
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