Vou começar a coluna por uma
frase que vi em uma postagem de uma pessoa querida, de uma campanha contra o
abandono de pessoas com transtornos mentais em Moçambique. Na frase escrita por
uma menina de 13 anos, me tocou muito a parte que diz “fazem parte do dia a dia,
mas tem ainda mais valor que o dia”, sua fala é sobre as pessoas e seus valores.
Esta frase também me remeteu a uma
série de lembranças e reflexões sobre como a vida de pessoas muitas vezes são
desconsideradas e de como o mínimo gesto de cuidado e de humanidade passa a ser
visto por alguns até como um gesto diferenciado, sendo que é apenas um gesto de
cuidado diante de uma situação de desamparo cotidiano.
Lembrei também da fala de uma
jovem que foi sozinha a um show e ao conhecer um grupo de jovens, deparou-se
com uma das meninas passando mal, ficou preocupada, ofereceu ajuda e notou que
ela ia desmaiar. Apesar do grupo de jovens ser mais próximo da garota que
passou mal, eram colegas, nenhum deles se colocou à disposição de ajudá-la, por
exemplo, levando-a até a ambulância que estava no estabelecimento. Eles
disseram que não iam perder o lugar, e assim foi: a jovem desconhecida levou a
menina que passava mal e depois que melhorou voltaram juntas ao show. A
indignação dessa jovem sobre como foi triste observar que existem pessoas que
ficam indiferente diante de uma pessoa que está passando mal.
Por fim, lembrei de um outro
gesto, em que uma aluna fala ao professor que diante de uma perda de um aluno
de uma escola, como foi importante para ela o fato dele falar sobre: o que eles
sabiam sobre o acontecimento? Como estavam se sentindo? Um ato que o professor
considerou minimamente humano, o de observar que tinha uma situação delicada
atravessando toda a escola e que não dava para fazer de conta que o dia seria
igual aos outros. A morte trágica de um jovem mexe com o ambiente escolar, seja
com uma tentativa de entender, seja com a lembrança da finitude, seja com a
saudade de alguns, seja por ver as pessoas próximas sofrendo.
É compreensivo que nem sempre as
pessoas se sentem seguras para falar sobre situações tão delicadas, mas passar
batido como se não tivesse acontecido seria como se aquilo não tivesse
importância. Diante de situações assim no ambiente de trabalho, o que recomendo
é sempre buscar a ajuda, seja de um colega, seja da direção para que este
assunto seja mencionado com respeito e cuidado, para que uma perda dessa não
passe como se nada tivesse acontecido, pois o efeito pode ser muito mais
angustiante para todos os impactados. Infelizmente, isto é comum em minha
experiência escutando instituições de saúde, que tinham muitas perdas de
pacientes e até de funcionários, a dificuldade de falar sobre isso gerava uma
angustia e uma dificuldade de acolhimento entre os membros, que foi reduzida
com o trabalho de acolhimento e orientação realizado para as chefias de como
lidar com as situações.
É como ver um colega agredindo
uma colega em seu ambiente de trabalho, não tem como não ficar impactado.
Escutei pessoas falando do medo, de lembrar que já sofreram ameaças no trabalho
de outras pessoas em outros contextos, e de pessoas que sentiram que quase
também perderam a razão em virtude de situações de muito sofrimento decorrente
de situações do trabalho, quase surtaram, mas buscaram ajuda e conseguiram
encontrar outra forma. O fato é que em nenhuma situação podemos admitir
situações de violência, sejam elas psicológicas ou físicas, devem ser
devidamente denunciadas e contornadas conforme a lei.
Quando qualquer ser humano
ultrapassa certas normas sociais implicando em situações de risco para o outro,
a lei deve ser aplicada considerando toda a complexidade da situação, que
sempre é carregada também de experiências singulares que precisam ser
cuidadosamente analisadas. A lei está para que a barbaridade, o olho por olho,
não seja o caminho, pois vários estudos já apontam, que violência só gera mais
violência.
Foi muito
importante observar o acolhimento e união das mulheres nas manifestações para
cobrar medidas de proteção às pessoas que sofreram violência, pois sim, o
histórico de abusos contra mulheres no ambiente de trabalho, infelizmente,
permanece alto. Em uma pesquisa divulgada em 2020¹, 76% das mulheres
entrevistadas relataram ter sofrido violência no trabalho, sendo que 23%
recebiam ameaças verbais, 22% foram discriminadas por sua aparência física, 37%
foram desconsideradas e depreciadas pelas suas atividades (37%), e 12% sofreram
assédio sexual, entre demais aspectos mencionados na matéria publicada no site
da Agência Brasil.
Considerando a
necessária responsabilização sobre os todos atos cometidos, cabe falar sobre
também sobre a temporalidade de nossa existência, ela nos permite entender que
o ser humano é um ser-aí, um ser lançados nas possibilidades, ou seja, que ele
não é estático. Considero muito pertinente as contribuições da fenomenologia
existencial de Heidegger, que compreende que a nossa existência é carregada de
uma temporalidade que consiste em tudo que faz parte de nossa história, nosso
ser contempla nosso passado, nosso presente e o que pensamos sobre o nosso
futuro. Quando olhamos para a nossa
existência somente considerando o que estamos sentindo e fazendo, sem
relacionar isto com as nossas experiências do passado e do que pensávamos do
futuro, ficamos aprisionados e limitados em uma vivência restrita, que o autor
vai chamar uma existência inautêntica. Assim é também, quando olhamos para a
existência do outro e a nomeamos a partir de um fato, estigmatizamos, limitamos
o olhar sobre a sua existência, isto tem um efeito sobre a relação com o outro,
e também sobre o outro.
Um exemplo disso, seria dizer que
os jovens que não ajudaram a garota são jovens incapazes de cuidar e se
preocupar com o outro, seria limitar a existência deles a um fato (eles são
isso e pronto). Quando consideramos a temporalidade da existência,
compreendemos que o ser-aí pode se apresentar de várias formas, que existem
várias possibilidades de lidar com as situações, que podemos nos surpreender e
que suas respostas não estão postas. Sendo assim, podemos olhar a mesma
situação dos jovens e entender que naquela situação demonstraram uma falta de
cuidado, e isto abre um campo para que possamos olhar novamente estes jovens e
observar se eles se comportam ou não de outra forma em situações diferentes, em
vez de fecharmos sua existência em um fato.
Escrito por Michele dos Santos Gouveia, Psicanalista,
Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e
Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a
transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).
Referências: