Quando o desejo enfrenta o etarismo
Durante a premiação do Oscar de melhor atriz de 2023, Michelle Yeoh que atuou no filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo deixou uma bela mensagem: “Meninas, não deixem ninguém dizer que vocês já passaram do seu auge”¹. Pois ela, aos sessenta anos, tornou-se a primeira asiática a ganhar o Oscar.
Ela também deixou uma mensagem para as meninas e meninos que se parecem com ela, que eles podem sonhar e também podem ocupar os espaços que tanto desejam.
Essa questão das pessoas acharem o que é o tempo certo para cada pessoa, muitas vezes é associado à idade, “você devia ter feito isso em outra época, agora passou do tempo, passou da idade”.
Falas como essa remetem ao etarismo, que é um preconceito com relação a idade, no qual as pessoas são rotuladas e desqualificadas por serem consideradas jovens ou velhas demais para determinadas coisas, simplesmente, usando o argumento da idade, como “você é velho para fazer isso”, “não devia fazer faculdade porque já passou a sua vez”, ou “você é muito jovem para realizar esse trabalho”, assim como usar argumentos relacionados a idade para desligar pessoas ou até não contratar, que se denunciado pode ser considerado crime relacionado a preconceito.
Recentemente, escutei uma colega falando o quanto ainda é recorrente falas de que “não pode usar um short porque já não tem idade”. O efeito de todo preconceito é reduzir a pessoa a uma determinada característica que nega a singularidade do desejo e das possibilidades de cada um.
Usar do preconceito para dizer o que é bom ou não para o outro, é algo comum dentro de um tipo de moral tradicional que tenta dizer que só existe um jeito de viver, e por isso desconsidera a diferença e tenta sempre a homogeneizar as experiências e culturas. Importante lembrar que a moral tradicional pode mudar com o tempo, um exemplo se encontra numa determinada época quando as mulheres eram impedidas de estudar, trabalhar e até administrar suas heranças, pois uma mulher com independência financeira era algo imoral. Por causa das mudanças sociais, esta moral ficou ultrapassada, mas, por muito tempo ela ditou de modo autoritário a forma de viver de muitas mulheres. Esse é um exemplo do tipo de moral que Lacan critica.
Para Lacan em seu seminário ‘A ética da psicanálise’, ele deixa claro que sobre o nosso desejo, somos nós os responsáveis. Cabe a nós encontrar uma forma de realizar, seja pela via da fantasia, da sublimação, das ações ou dos sonhos.
Se ao tentar vamos conseguir, isso não dá para saber, mas o que vamos fazer com o nosso desejo, isso só cabe a cada um de nós. E aos desavisados e confiantes que o outro tem que bancar todos os nossos desejos seja por qualquer justificativa fantasiosa, ele é muito claro: “é melhor esperar sentando”.
Ainda bem que Michelle Yeoh não ficou esperando sentada ela saiu da cadeira e fez tudo que pode, pois sem tentar é que não ia rolar.
Assim, o desejo na psicanálise não é qualquer vontade, mas, trata-se de um desejo muito forte, algo além da necessidade. Um exemplo que cabe nessa coluna sobre o etarismo é a história real apresentada no filme Uma lição de Vida (2009), em que o personagem é um queniano de 85 anos, que para muitos talvez não tivesse mais a necessidade de aprender a ler, já que chegou nessa etapa da vida se virando, mas, para ele aprender é um sonho, algo que vai facilitar a sua vida, algo que sempre quis, por isso, além de aprender a ler, ele busca continuar estudando porque esse é o seu desejo, o desejo de aprender.
Porém, para conseguir realizar esse desejo, ele luta para ter este direito cobrando as autoridades de seu país. Esse exemplo mostra que o desejo não tem idade e não passa por uma necessidade, mas algo além disso.
Mas, como a vida é repleta de contradições, enquanto vejo até pessoas com 30 anos ficarem se perguntando se vão ser respeitadas pelos mais jovens ao fazer uma graduação ou ao começar em uma nova área de trabalho. Do outro lado, temos várias pesquisas que apontam que estamos vivendo mais e que com o baixo índice de natalidade, estamos rumo a uma mudança no mundo do trabalho, em que este terá que absorver pessoas mais velhas porque a mão de obra está envelhecendo.
Impossível, não observar que a Europa já está correndo, desesperadamente, para aumentar o tempo de trabalho das pessoas adiando a aposentadoria, como está sendo a discussão na França que tenta mudar para 64 anos a idade de se aposentar, assim como na Alemanha que já tentou discutir a possibilidade de aumentar para 70 anos a idade da aposentadoria, conforme matéria publicada no site do Jornal Folha de São Paulo em Agosto de 2022.
Diante desse cenário, faz tempo que muitas consultorias já estão dando suporte a grandes empresas brasileiras para se prepararem para cada vez mais favorecer o trabalho intergeracional. Mas será que as instituições de ensino estão atentas que essa preparação de seus estudantes para lidar com essa interageracionalidade?
A postagem que viralizou das alunas de uma faculdade de biomedicina na qual expressam que uma pessoa de 40 anos não devia estudar e sim estar aposentada. E que, além disso, “gente de 40 anos não pode mais cursar a faculdade”, mostra que o respeito das escolhas das pessoas, seja de buscar seus sonhos independente de sua idade, raça ou mesmo gênero, é algo que precisamos investir continuamente. Não tem como negar, que esses preconceitos caem mais sobre as mulheres, e a mania patriarcal de achar que podem dizer o que elas devem vestir e fazer.
Esse discurso de supervalorização da juventude que deve assumir os lugares de formação e trabalho, é comprado por muitos que vão descobrindo que no mundo do trabalho uma andorinha não faz verão. Não podemos desconsiderar o sofrimento dos jovens que buscam as suas identidades pessoais e profissionais em meio a tantas incertezas no mundo do trabalho.
Conforme pesquisa publicada no site de notícias CNN em junho de 2022, os jovens e pessoas com mais 50 anos estão entre os que mais encontram dificuldades para encontrar oportunidades de trabalho, diante disso, as políticas de capacitação e incentivo às empresas e geração de renda, entre outros programas, são fundamentais para ajudar a dar melhores condições para essas populações. Além disso, ampliar a informação que é fundamental para desconstruir preconceito.
Temos presidentes no Brasil e fora do país com idades superiores, assim como muitos outros profissionais, como a cantora Elza Soares que fez shows até os seus 91 anos, assim como Elisabete Tenreiro, que com 71 anos, que, além de ser professora, era membro de uma das escolas de samba de São Paulo, na qual desenvolvia projetos com as crianças.
Uma mulher que “lecionava como um propósito de vida”³, e que foi assassinada no dia 27 de março de 2023 por um aluno. A vida de Elisabete foi tragicamente interrompida por um aluno que a matou a facada e tentou ferir outros colegas de classe. Ela trabalhou com muito amor segundo relato de seus próximos, e enxergava na educação um legado para a transformação social.
Seria necessária uma coluna inteira dedicada a refletir sobre essa tragédia, no momento sigo ainda mobilizada pela reflexões sobre o aumento da violência, que tem crescido cada vez mais em nossas escolas. Diante disso, penso que temos que ficar atentos às reivindicações das escolas para que seus alunos, professores e demais profissionais da educação possam ter suporte e orientação para lidar com as questões diversas que atravessam o ambiente escolar, assim como, precisamos refletir sobre quais são os espaços que para o diálogo e busca de solução conjunta em meio a sobrecarga burocrática que muito profissionais da educação tem vivenciado.
Escrito por Michele Gouveia- Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem. Site: https://michelegouveia27.wixsite.com/michelegouveia, e-mail: michelegouveia.psi@gmail.com
Referências:
¹https://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2023/03/14/discurso-antietarista-de-vencedora-do-oscar-vira-inspiracao-para-estudante-hostilizada-por-ter-mais-de-40-anos-exemplo-pra-mim.ghtml
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/08/aposentadoria-aos-70-anos-e-tema-de-debates-na-alemanha.shtml
²https://www.cnnbrasil.com.br/economia/desemprego-assombra-mais-jovens-e-geracao-acima-de-50-anos-diz-estudo/
³https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/27/professora-morre-vitima-de-ataque-em-escola-na-vila-sonia.ghtml
Quando o desejo enfrenta o etarismo |
Tags
Coluna Psi