O Homem do Sambaqui
Pouco se sabe sobre o primeiro povoador do litoral brasileiro. Diversos pesquisadores se dedicaram a investigar as origens desse primitivo habitante de nosso País, que deixou como atestado de sua existência elevações conhecidas como sambaqui e também artefatos líticos. Nesta edição, conheceremos os estudos do naturalista Ricardo Krone e do geólogo Kenitiro Suguio.
Objetos líticos e ossos coletados por Ricardo Krone |
Objetos líticos e ossos coletados por Ricardo Krone |
OS ESTUDOS DE KRONE
Ao pesquisar os sambaquis do Vale do Ribeira, em especial os localizados em Iguape e Cananeia, Ricardo Krone (1861-1917) acreditava que o “povo do sambaqui” teria vindo da região dos Andes, após longo processo migratório, mais precisamente dos Andes argentinos.
O “sambaquieiro” não conhecia a cerâmica, utilizando-se basicamente de utensílios feitos de pedra lascada e polida.
Para Krone, o início dos sambaquis deve ter se dado na época pleistocena, uma vez que “a posição dos primitivos sambaquis indica uma antiga linha da costa marinha e todo o espaço compreendido dentro da grande curva por eles demarcada, era uma larga bahia, cuja superfície passava de 1.200 km2.”
De acordo com o renomado naturalista: “Esta baía encheu-se depois, durante o tempo quaternário, por detritos trazidos pelo Rio Ribeira e, à medida que a linha da costa avançava, em seguimento à lenta consolidação do terreno, eram os índios forçados a abandonar os seus sambaquis, por falta de víveres na vizinhança e estabelecer-se sucessivamente de novo, até a costa adquirir mais ou menos da sua forma atual.”
Geralmente, o “homem do sambaqui” se fixava próximo ao mar (onde encontrava seu alimento básico: ostras, ameijoas, mexilhões, berbigões etc), e sempre junto a um morro de constituição rochosa, de onde retirava a matéria-prima para seus utensílios (raspador, faca, machado etc, feitos de quartzo, sílex, gnaisse e outras rochas).
Ao se estabelecerem em seu sítio, os indígenas, com o passar do tempo, iam amontoando seus restos de cozinha num canto, ao sopé do morro ou da colina, formando uma elevação artificial que muitas vezes alcança avançada altitude e considerável comprimento. Ali veem-se conchas de moluscos, espinhas de peixes, ossos de animais, restos de carvão (vestígios de fogueiras) etc.
Quando morria alguém, era enterrado diretamente numa cova aberta no próprio sambaqui, em posição sentada (fetal), sendo seu corpo recoberto por folhas para evitar o contato direito com o solo. Pela profundidade da cova se pode avaliar a posição que o indígena ocupava na aldeia, bem como pelos objetos colocados junto ao cadáver.
Segundo a sua importância, sobre o local da cabeça do morto colocavam dois ou três pedras pequenas e, por cima destas, servindo de “tampa”, colocavam uma pedra maior.
Quase sempre o corpo era originalmente colocado na posição sul. Ao se decompor o cadáver, no entanto, e com o peso da pedra e pela própria pressão do sambaqui, o esqueleto sofria deslocamento, alterando um pouco sua posição original.
Com as crianças, não se demonstrava muito respeito, enterrando-as quase à flor do sambaqui e em posição de decúbito lateral, como se fossem simplesmente jogados em cima do sambaqui.
Em um ponto específico do sambaqui, geralmente na base do morro, ficava a “oficina”, onde os “sambaquieiros” confeccionavam seus artefatos líticos e onde é grande a incidência de restos de artefatos incompletos ou defeituosos.
Restos de carvão vegetal evidenciam também que cozinhavam seus alimentos em certos pontos do sambaqui, sendo frequente encontrar restos de moluscos e peixes queimados, ou melhor, com evidências de terem sido assados em fogueiras.
Quando se esgotava seu alimento básico (geralmente a ostra, produto do mar), e, como o oceano fosse se afastando, os “sambaquieiros” transferiam-se para mais próximos do mar, onde pudessem ficar bem junto de seu alimento predileto.
Krone acreditava que os sambaquis mais distantes do oceano seriam, por isso mesmo, mais antigos e, se for passada uma linha imaginária unindo todos esses sambaquis antigos, ter-se-ia a configuração do oceano naqueles tempos.
O ÍDOLO DE IGUAPE
Ídolo de Iguape |
Por volta de 1906, ao pesquisar o sambaqui do Morro Grande, situado num vargedo entre o rio das Pedras e o rio Comprido, no santuário ecológico da Jureia, em Iguape, Ricardo Krone encontrou uma curiosíssima estatueta em pedra gnaisse, que ficou conhecida nos meios científicos como o Ídolo de Iguape.
Para o naturalista, essa peça teria sido esculpida por algum povo indígena dos Andes, vindo parar no sambaqui após longa imigração. A sua descoberta provocou grande interesse nos meios científicos nacionais e do exterior, pela singularidade da peça e por estar relacionada às origens do homem pré-colombiano, sendo sua idade calculada, pelo Carbono 14, em, aproximadamente, 25 mil anos.
As suas medidas são 9 cm de altura por 3,2 cm de largura e 8 cm de comprimento. O Ídolo de Iguape encontra-se no acervo do Museu de Arqueologia da USP, existindo uma única cópia no Museu Histórico e Arqueológico de Iguape.
AS PESQUISAS DE SUGUIO
O geólogo Kenitiro Suguio (1937-2021) fornece mais informações sobre esse misterioso “homem do sambaqui”. Segundo o pesquisador, os sambaquis da região de Iguape e Cananeia datam de 6.000 a 1.500 anos. O sambaquieiro não conhecia a agricultura, a cerâmica ou a domesticação de animais – nem mesmo a do cão, que alguns indígenas atuais domesticaram. Sabia trabalhar muito bem a pedra, que quase sempre era polida. Sobre a inexistência de vestígios de suas primitivas habitações, Suguio escreve:
“Embora não sejam encontrados indícios de qualquer tipo de habitação que pudesse tê-los abrigado, possivelmente o homem do sambaqui era sedentário ou semi-sedentário. Ele devia habitar choças ou cabanas construídas talvez sobre elevações próximas aos sambaquis e protegidas dos mosquitos e da umidade.”
Segundo o geólogo, o “homem do sambaqui” despareceu bem antes da chegada dos portugueses, possivelmente “extinto por recém-chegados das migrações neolíticas, mais bem armados e portadores de uma cultura mais avançada.”
Os moluscos mais abundantes nos sambaquis são os berbigões e as ostras. Os primeiros aparecem em águas salgadas; já as ostras também podem ser encontradas em água doce. O primeiro tipo se encontra mais nos sambaquis próximos à costa, e são mais modernos, ao passo que os sambaquis do interior – compostos basicamente por conchas – são mais antigos, conforme determinou Krone.
De acordo com Suguio, há 5.000 anos o nível do mar ficava a 3,5 metros acima do atual. Já por volta de 3.800 anos, o nível possivelmente era um pouco inferior ao atual. Aproximadamente 3.500 anos, o nível do mar voltou a subir, chegando a cerca de 3 metros do nível atual. Por fim, 1.800 anos atrás, mais ou menos, possivelmente o nível do mar chegou ao atual.
Escreve Suguio: “O homem do sambaqui se estabelecia nas margens dos estuários e baías, durante as ingressões marinhas (subidas do nível do mar), de onde coletava os moluscos que constituíam a principal fonte de alimentação.
Com o recuo do mar, durante as regressões marinhas, as condições favoráveis à vida dos moluscos se deslocavam e as gerações seguintes do homem do sambaqui também migravam, iniciando a construção de um novo sambaqui.
Quando ocorria uma nova transgressão, sambaquis anteriores podiam ser reocupados. Nos últimos 6.000 anos as ingressões marinhas, continente adentro, teriam progredido com uma velocidade de 5 a 10 km em um período geologicamente curto de certa de 500 anos.
Portanto, pode-se mesmo considerar que o homem do sambaqui tenha sido uma verdadeira testemunha ocular das flutuações do nível marinho na região de Cananeia e Iguape durante os últimos 6.000 anos!!!”
Suguio nos dá uma boa descrição do “homem do sambaqui”, que era “dono de dentes fortíssimos, gastos pela areia dos mariscos ou pelo mastigo de raízes e coisas duras, porém, normalmente sem cáries.”
O sambaquieiro era mais pescador e coletor do que caçador. Não possuía instrumentos potentes de arremesso (“talvez nem mesmo a arco e o propulsor”, escreve Suguio), daí a caça ficar em segundo plano.
No entanto, sabia capturar animais maiores, como o tapir e a onça, utilizando-se de armadilhas. A presença de ossos de baleia nos sambaquis pode ser explicada pela frequência com que esse cetáceo encalhava nas praias da região de Iguape e Cananeia.
(Publicado na TRIBUNA DE IGUAPE, nº 269, outubro/2023)
REFERÊNCIAS
Exploração do Rio Ribeira de Iguape. Comissão Geográfica e Geológica do Estado de S. Paulo, 2ª ed., 1914.
Krone, Ricardo. O Ídolo Antropomorpho de Iguape. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, Tomo XVI, 1910.
Suguio, Kenitiro. O Homem do Sambaqui. Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, nº 187, de 1/6/1980, p. 9.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br |
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