O mito do herói da saúde - Por menos idealização e mais apoio e compreensão de suas necessidades

No dia 12, em São Paulo, o dia Estadual do Trabalhador da Saúde. Neste mês, também, foi comemorado o Dia do Trabalhador e o dia do combate ao assédio moral, no dia 2. 

 A partir de muitas escutas ao longo de minha trajetória profissional, achei pertinente trazer alguns dados de situações que aparecem nas pesquisas a fim de mostrar um pouco mais do outro lado, a vida mental do trabalhador, que, muitas vezes, fica difícil de olhar quando estamos ali, aguardando para ser atendidos, vivenciando o estresse da superlotação ou mesmo enfrentando dores.

A pandemia ao mesmo tempo que trouxe mais notoriedade para os profissionais da saúde (que inclui todos que estão trabalhando dentro de um sistema de saúde, tais como cozinheiros, médicos, enfermeiros, técnicos, atendentes, auxiliares de limpeza e etc.), sendo intitulados como heróis, essa forma de reconhecimento por alguns referiu-se a luta por salvar vidas em meio a um cenário caótico, mas também acabou colocando mais uma vez estes profissionais em um lugar idealizado, no qual gerou mais sobrecarga e um sentimento de incompreensão por pedir que seja escutado quando demanda o básico, tal como fala o enfermeiro no documentário “Na linha de frente (2020)”, disponível no Youtube, que narra a vivência dos profissionais na pandemia e evidencia questões antigas como: a falta de IPIs, sobrecarga de trabalho e falta de reconhecimento financeiro pelo trabalho de cuidado realizado, principalmente, dos trabalhos relacionados à enfermagem.

No Brasil, os trabalhadores da saúde enfrentaram, além de uma pandemia que ocasionou muitas mortes e uma sobrecarga dos sistemas de saúde mundiais, uma luta contra a negação das evidencias cientificas sobre o uso de máscara e a eficácia da vacinação, e a contraindicação de tratamentos ineficazes resultantes das fake news sobre a covid-19, como efeito da confusão de informações contraditórias de um presidente que negava os dados científicos, conforme relato dos profissionais no documentário “Saúde sem máscaras”, desenvolvido por pesquisadoras da EPSJV/Fiocruz, em 2021. 

Situação que não foi vivenciada pelos enfermeiros brasileiros que trabalham na Alemanha, aonde o vírus chegou primeiro e junto veio o excesso de trabalho, a falta de leitos, mas, em nenhum momento, tiveram que lidar com pessoas exigindo uma coisa que não podiam fornecer visto não se tratar de um tratamento reconhecido cientificamente.

O crescente recrutamento de nossos profissionais da enfermagem por outros países é mais um dado que reforça o quanto é necessário políticas públicas para garantir e fiscalizar melhores condições de trabalho para este setor, a fim de criar condições mais atrativas para a sua permanência. 

Sobre isso, a pesquisa “Saúde Mental e Cuidados de Saúde no Setor Público: Estudo de casos internacionais (2023)” nos mostra que na Suécia, Austrália, Canadá, Brasil e Libéria, a questão da sobrecarga de trabalho, assédio no trabalho, baixo salário e risco de violência física e psicológica têm feito governantes e sindicatos se mobilizarem para compreender que este é um problema que está impactando a saúde pública como um todo. 

Nesta pesquisa, o Brasil é o único no qual os profissionais da enfermagem necessitam de duplo vínculo para complementar a renda.

Ao pesquisar sobre violência laboral ou violência ocupacional em plataformas de pesquisa como a Capes e Google Acadêmico, é notória a recorrência de pesquisas relacionadas à violência no setor de Saúde. 

Uma das pesquisas selecionadas, “Violência ocupacional contra profissionais de saúde no Brasil: uma revisão integrativa da literatura”², publicada em 2023, aponta que a alta prevalência de violência, sendo as principais vítimas o público feminino, com alta recorrência de violência verbal, assédio moral e por fim, a violência física e que os usuários são os principais agressores². 

Os resultados também revelam que a falta de suporte ao trabalhador por parte da instituição bem como de ferramentas para relato e providências cabíveis, leva a subnotificação dos eventos.

A pesquisa aponta algumas estratégias voltadas aos gestores e à instituição, são elas:

1) Identificar aspectos falhos na comunicação com as equipes pode ajudar a reduzir estas situações que suscitam reações negativas que, por sua vez, podem precipitar a violência ocupacional.

2) Investir em conscientização e sensibilização dos usuários e acompanhantes;

3) Investir na capacitação dos profissionais dos diversos níveis hierárquicos para reconhecer e denunciar a violência ocupacional.

4) Desenvolver comitês que possam ajudar a criar protocolos e estratégias coletivas de enfrentamento e de denunciar a violência, para que essa problemática possa ter uma maior visibilidade.

Outro material importante é a “Cartilha de prevenção do assédio moral no setor público” (2007). 

Conforme a cartilha, o assédio moral refere-se: “a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades. É uma conduta que traz danos à dignidade e à integridade do indivíduo, colocando a saúde em risco e prejudicando o ambiente de trabalho” (p.6).

A cartilha detalha as diversas formas de assédio moral no trabalho, ela apresenta alguns caminhos, entre eles aquele para as pessoas que estão tentando buscar testemunhas e informações sobre como denunciar e notificar situações de violência física e psíquica (assédio moral). 

É importante guardar provas do assédio, buscar dividir o sofrimento com alguma pessoa de confiança (familiar, amigo, profissional da psicologia etc.), e evitar ficar a sós com a pessoa que comete o abuso, buscar participar do atendimento ou da reunião se for com superior imediato, sempre acompanhado de outras pessoas que possam ser testemunhas, isto pode ajudar a reduzir a prática do assédio.

Tenho clareza que a situação dos trabalhadores da saúde pública é mais complexa, porém, também sei que o ambiente de troca, respeito e cuidado entre os profissionais, assim como o gesto de reconhecimento da população faz com que essas lutas possam ocorrer com mais força e saúde.



Escrito por

Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP.

E-mail:michelegouveia.psi@gmail.com Site: https://michelegouveia27.wixsite.com/michelegouveia





REFERÊNCIAS:

Documentário : Na linha de frente. Direção: Felipe Menezes e Gustavo Gama Rodrigues. 2023. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=8RzqWECyPsg

Documentário: Saúde sem máscara. Direção: Renato Prata. Produção: Mariana Abrante.Ed. INOVA/Fiocruz, 2021, 52 min. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=NBtJl8nsN5I

BALLARDIE, Ruth; TARTANAGLU-BENNETT, Safak, WEGHAMANN, Vera. Saúde Mental e Cuidados de Saúde no Setor Público: Estudo de casos internacionais. A internacinal de Seviços Públicos, 2023. Disponível: https://publicservices.international/resources/digital-publication/mental-health-and-public-sector-healthcare-international-case-studies?id=14371&lang=en

PIMENTA, Ana Carolina Porcaro et al. Violência ocupacional contra profissionais de saúde no Brasil: uma revisão integrativa da literatura. Brazilian Journal of Development, v. 9, n. 05, p. 17926-17944, 2023.

SPACIL, Daiane Rodrigues; RAMBO, Luciana Inês; WAGNER, José Luis. ASSÉDIO MORAL: A MICROVIOLÊNCIA DO COTIDIANO-Uma cartilha voltada para o serviço público. Brasília: Sinapsempu, 2007.

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