Nelson Rodrigues tinha uma fala que pode nos dar abertura para comentar sobre esse filme. Dizia ele que “a maioria das pessoas imaginam que o importante, no dialogo, é a palavra. Engano, e repito: o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão”.
Ou seja, é no silêncio!
É com o silêncio e a partir dele que colocamos algo de nós. Transformando o silêncio e o colocando em movimento com as palavras é que se cria o efeito da fala.
A primeira vista parece um filme confuso. Até agora não sei que imagens são aquelas de pessoas dançando numa festa noturna. Uma hora aparece Calum, outra Sophie (a filha de Calum), noutra cena uma mulher adulta é quem dança.
Mas esse filme não é desorganizado. Pelo contrário, muito bem feito. Há filmes que sentamos para assisti-los com ideias de um desejo de entender tudo. Esse filme não é um deles. Assim como os filmes de Ingmar Bergman (O sétimo selo, 1957; Morangos silvestre, 1957; Persona – quando duas mulheres pecam, de 1966, entre outros), eles mexem com a nossa disponibilidade de espectador. Essa “dis-posição” nos fala de nossa própria “su-posição” como espectador. Na psicanálise, de modo geral, a regra da escuta visa impedir que possamos compreender muito rápido o dizer do paciente, porque assim nos favorece a receptividade da surpresa do discurso.
Dito isso, volto ao “Aftersun”. Trata-se de um filme bem estruturado, que retrata a memória de alguém (de Sophie), como se o filme se passasse dentro de sua cabeça, com lembranças fragmentadas como são nossas memórias. Ele conta a lembrança de pequenas partes do passado da personagem, como se toda vez em que ela tenta acessar essas lembranças ele (o passado dela com o pai) passa a ser modificado de acordo com o presente. As perspectivas mudam as lembranças. Não se trata de um filme de narrativa linear. É um filme de memória.
“Aftersun”, de 2022, filme de estreia da cineasta Charlotte Wells é um convite para pensarmos sobre as incertezas das recordações entre pais e filhos. Nossa lembrança é algo como um conglomerado construído pelos restos das cenas vividas, pelos quais são escolhidas através do movimento do desejo. O posterior ressignifica, dá um novo sentido ao anterior, deletando qualquer possibilidade de uma cronologia linear.
No filme podemos perceber claramente o desejo de ‘Sophie’ de reencontrar esse pai nas suas memórias.
Finalizo citando uma passagem da crítica do filme feita por A.O.Scott no ‘The New York Times’ (20/10/2022), em que ele escreve que “o poder do sensível e devastador “Aftersun” vem de acolher o fato básico e universal da perda...(O filme) é sobre uma experiência, na maior parte feliz... (algumas experiências que Sophie tem com o pai nas férias na Turquia) que termina em lágrimas. As suas lágrimas”.
Daniel Vicente da Silva
Psicanalista, Psicólogo especialista em Psicologia Clínica e Professor Universitário. Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS/R. E-mail: danielvicente_@hotmail.com