Meninas do Sol cantam a força da palavra na Comunidade do Marujá

Recentemente, no dia 3 de maio de 2024, o SESC Registro-SP promoveu um excelente show gratuito em seu espaço. A banda “Meninas do sol”, composta por cinco mulheres da praia do Marujá, localizada na Ilha do Cardoso, é sem dúvida a trilha sonora perfeita para adentrar na experiência de uma comunidade que vive em harmonia com a natureza.

A chegada de barco nos transporta para um tempo em que podemos deixar de ver belezas na tela, para apreciar a natureza viva na paisagem do céu azul contrastando com os voos dos Guarás Vermelhos, junto aos mergulhos de Botos cinza.

A trilha da banda Meninas do Sol tem músicas autorais que falam sobre a resistência não armada, as suas contribuições como mulheres para a manutenção da “terra sagrada” e os diversos saberes das comunidades tradicionais caiçaras, indígenas e quilombolas. 

A música “Mulheres caiçaras”¹ fala sobre como elas educam seus filhos, sendo pela consciência e pela palavra. A psicóloga Bosi (2004) aponta que a narrativa poética “possibilita acessar e expressar emoções (lembranças) difíceis, isto por possuir elementos da melodia que se aproximam de nossas experiências primárias da oralidade (um som, um ritmo).

Sabemos que a narrativa oral é uma das principais formas de transmissão cultural nas comunidades tradicionais. 

As músicas e as histórias dos mais velhos, por exemplo, são transmissões de uma história de um povo e de uma época, muitas vezes ocultada da história oficial por diversos interesses políticos. 

Manter viva a história de um povo pela transmissão de suas memorias permite a compreensão dos fatos e a elaboração destes. 

Conforme Bittencourt (2012), a narrativa torna-se então a possibilidade, para o sujeito, de legitimar suas ações e de apropria-se da sua vida.

Escutar as músicas dessa banda me fez lembrar das cirandas de minha infância e das festas no sertão. 

Resgatei uma memória recente, da conversa que tive com a Paula, uma das artistas da banda, que falou sobre o trabalho coletivo de limpeza da praia que é feito pela comunidade, e de como ela ficou tocada ao ver como a criança desde muito pequena pode expressar sua confusão em não entender por que as pessoas não retiram o lixo que geram quando visitam a praia.

Aos interessados em conhecer um pouco sobre toda a luta e resistência da comunidade do Marujá, recomendo o belo trabalho de mestrado de Alvaides (2013) no campo da psicologia social intitulada “Um estudo psicossocial sobre as memórias sociais dos moradores da comunidade do Marujá- Parque Estadual da Ilha do Cardoso (2023)”.

A dissertação permite observar o relato dos moradores sobre o processo de mudanças no trabalho, passando da pesca e agricultura para o turismo sustetável. 

A atuação política da comunidade nas reuniãos da Unidade de Conservação é fundamental para que as necessidades da comunidade e a manuteção dos elementos fundamentais de sua cultura sejam preservados.

A pesquisa traz narrativas sobre as diversas lutas e resistências para poder viver no território preservando os elementos de sua cultura de viver em harmonia com a natureza. Fiquei emocionada quando li sobre o modo como construiram, com suas próprias mãos, o posto de saúde, pois, só assim puderam conquistar o direito de ter um médico para atender a comunidade. 

Além disso, construíram toda a rede de distribuição de água. Destaco também que foi pela capacidade de articulação da comunidade que o estudo para a implantação de uma usina nuclear não vingou.

O modo de ser caiçara também é citado no trabalho como uma identidade que realmente se atualiza no tempo, não nega as mudanças, vai incorporando os saberes transmitidos e construindo novos saberes para lidar com novas situações. 

A comunidade do Marujá permite refletir como é possível uma ação comunitária que contempla as necessidades dos cidadões em harmonia com a natureza, reafirmando o pertencimento. “O novo é incorporado; porém sem negligência ao passado, mas sim, e, sobretudo, com o respeito e consideração a ele”(Alvaides, 2013, p.155).

Lembrei do texto da psicanalista Barry (1991), no qual se depreende que para que alguém tenha uma identidade é fundamental se diferenciar, mover-se e admitir mudanças.

Alvaides (2013) apresenta em sua conclusão que no inicio da transformação do território em unidade de conservação PEIC, houve uma negação do modo de vida da comunidade, entretanto, isso muda quando passa a ocorrer uma gestão participativa que abre espaço para se considerar os anseios, as particularidades e singularidades da comunidade. 

 A gestão participativa permite acompanhar e compreender o que está acontecendo na comunidade.

A preservação dos lugares de memória busca conciliar o apelo ao passado com a vontade de uma coletividade fundamentalmente envolvida em suas transformações e renovações, resguardando as particularidades e cotidianos locais, tornando-se “(...) sinais de reconhecimento e de pertencimento de um grupo numa sociedade que só tende a reconhecer individuos iguais e identicos”(p. 13). 

Esse processo de se tornar um elo entre o passado e o presente confere uma identidade ao local (Nora, 1993, citado por Alvaides (2013).

Conforme Berry (1991), toda identidade se forma com o tempo, porém, caso seja apenas voltada ao projeto futuro, pode-se esquecer do presente e ficar só preocupada com os deveres, e assim pode se esquecer de ser um pouco feliz (p.53). 

Isso me fez pensar na minha chegadapara passar o natal na comunidade, e o quanto foi importante observar que em meio a todo o trabalho dos adultos para organizar as coisas para a chegada dos turistas para a semana do ano novo, as crianças bricavam nos jardins, a solidariedade e a celebração do natal em família, isso tudo me remeteu a outros lugares turisticos nos quais os moradores se tornam escravos dos turistas ou de uma forma de viver que já não atende às suas necessidades.

Encerro a coluna deixando os meus agradecimentos a todos que gentilmente me receberam em suas casas, me contaram suas histórias e me permitiram não só curtir as belezas locais, mas resgatar na memória as minhas experiências comunitárias, nas festas do sertão em casas de farinha, no gosto por contarem histórias dos familiares do nordeste.



Escrito por Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC/SP. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com

(Direitos Reservados. A Autora autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos)

DICAS DE COMO CHEGAR A COMUNIDADE DO MARUJÁ:


Para chegar ao Marujá você pode ir por dois caminhos. Um deles pega a estrada de terra que leva ao distrito do Ariri, da cidade de Cananéia, e pegar um barco para uma bela e rápida travessia. A estrada tem belas paisagens, muito verde e pequenos riachos no caminho, que é possível percorrer com um carro 1.0, quando a estrada está boa, e para saber das conduções da estrada vale consultar os moradores locais. 

O outro caminho é ir de carro até Cananéia e de lá pegar um barco, cuja viagem bela, mais longa e com um custo que pode ficar maior.



Referências:


ALVAIDES, Natália Kerche. Tradições traduzidas: um estudo psicossocial sobre as memórias sociais dos moradores da comunidade do Marujá-Parque Estadual da Ilha do Cardoso. 2013.

BERRY, Nicole. O sentimento de identidade. São Paulo: Escuta,. 1991.

BITTENCOURT, MARIA INÊS GARCIA DE FREITAS. Michel de Certeau 25 anos depois: atualidade de suas contribuições para um olhar sobre a criatividade dos consumidores. POLÊM! CA, v. 11, n. 2, p. 185 a 192-185 a 192, 2012.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. Ateliê editorial, 2003.






Meninas do Sol cantam a força da palavra na Comunidade do Marujá
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