No primeiro feriado federal da Consciência Negra, tivemos vários espaços na cidade de Registro-SP para celebrar a cultura afro-brasileira.
Um dos eventos foi o SarAfró promovido pela Associação Cultural Ilê Axé Dudu, no Teatro Caixa Preta, cuja programação teve vivências de maracatu, capoeira, dança e muita música como chorinho, rap e sons dos tambores com o Movimento Contregum e convidados.
Em meio a tudo isso, também rolou uma roda de conversa que inspirou essa coluna e me fez pensar a respeito da nossa ancestralidade (da história dos que vieram antes de nós, dos nossos familiares, de onde vieram, o que viveram, como viveram e as implicações disso em nossa história), o que me ajudou a entender como o complexo do vira-lata tem a sua origem na negação do próprio saber.
Ainda lutamos contra o pensamento colonizador que tentou apagar nossos saberes, o que, de alguma forma, contribuiu para uma espécie de complexo de vira-lata, tal como o descrito pelo escritor e dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues que se refere a “algo que invalida as nossas qualidades”, gera o sentimento de “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo” (Rodrigues, 1958/1953, p.2).
Esse verbete rodriguiano pegou e teve desdobramentos, sendo um deles, que considero muito pertinente, a pesquisa de Santos (2016):“A psicologia social do Complexo de Vira-lata: Conciliando Distintividade Positiva e Justificação do Sistema”, na qual houve entrevistas de estudantes universitários buscando analisar os processos indenizatórios, ou seja, sobre brasileiros que atribuíram maior valor de indenização aos estrangeiros europeus do que aos próprios brasileiros, e atribuíram menor indenização ainda aos estrangeiros africanos.
Nelson Rodrigues lançou a sua percepção, mas não problematizou sobre o efeito desse complexo, correspondente ao fato dele produzir um discurso colonizador, responsável por várias formas de aniquilamento de um povo, através da negação ao acesso a direitos, da tomada de suas terras e do ocultamento da sua história.
No campo educacional/ acadêmico, a tentativa de aniquilamento simbólico se deu via o epistemicídio que oculta conhecimentos culturais e sociais que não se enquadram nos critérios do "saber" ocidental.
Este termo desenvolvido pelo sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, e também ampliado pela escritora e filosofa brasileira, Sueli Carneiro, é utilizado para explicar esse ocultamento dos conhecimentos e produções afo-brasileiros nos currículos educacionais.
Um primeiro passo para recuperar o saber negado, foi dado, em 2003, com a promulgação da lei que torna obrigatório o ensino da disciplina de cultura afro-brasileira.
Em 2008, foram acrescentados os conhecimentos do povo originário, e por isso, foi renomeada “Estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira”. Importante observar que ambas as leis foram instituídas nos dois governos do presidente Lula.
Precisamos transmitir mais a nossa história, e sobre isso temos o filosofo Renato Nogueira (2015), com a apresentação de pesquisas que resgatam textos egípcios que são documentos africanos que discutem aspectos filosóficos que envolvem ética e política, como os ensinamentos de Ptahhotep, datados de 2780-330 a.C., período anterior ao da filosofia grega.
Diante do epistemicídio no campo filosófico, ele propõe a inclusão das diversas origens da filosofia favorecendo novas perspectivas e se opondo a ideia de uma predominância de saberes, e que considera a cultura e os saberes ancestrais (dos que vieram antes de nós) por meio de uma filosofia afroperspectivista.
O autor fala da “violência simbólica causada pelo racismo epistêmico” que “recusa a validade dos saberes africanos, um descrédito sistemático às filosofias africanas. A expressão também se aplica à recusa de saberes ameríndios, latino-americanos, de mulheres, femininos, queer e de crianças” (Noguera, 2016, p.1).
Importante lembrar que a ancestralidade ultrapassa questões geográficas, isto porque uma pessoa que nasceu nos EUA pode ser uma pessoa oriental, pois não se trata de uma localização, mas sim do modo como ela se localiza na sua história e cultura, depende do modo como protagoniza os aspectos ancestrais, culturais e históricos de sua história, conforme aponta Asante (2008).
A roda de conversa do SarAfró tocou no ponto sobre o desafio que tem sido conquistar um espaço de transmissão dos saberes indígenas e afro-brasileiros.
Escutamos na roda um representante da cultura indígena que expressou a dificuldade da comunidade de espaço e apoio para a transmissão dos seus saberes nas escolas e questionou o novo vice prefeito Fábio Tatu para uma melhora em relação a este problema.
Trata-se de uma questão que também afeta a transmissão dos saberes da cultura afro-brasileira, que também acaba tendo muitos convites perto do feriado da consciência negra, o que me fez pensar sobre a riqueza cultural caso essas transmissões ocorressem ao longo do ano, com um espaço no calendário que vai além de uma data comemorativa, pois configuraria uma prática antirracista, que vai além da obrigatoriedade, pois passa pela consciência de fazer tudo que é possível para eliminar o racismo que fez e faz atrocidades no mundo.
Na roda de conversa foi reiterada a necessidade de compromisso da nova gestão em avançar em relação as gestões anteriores, com mais cargos buscando a equidade racial e verbas destinadas ao enfrentamento do racismo.
Cabe lembrar que Registro assumiu, desde novembro de 2023, o pacto de cidade Antirracista junto ao Ministério Público. Esperamos que a nova gestão possa avançar com clareza e busque ser modelo para outras cidades de práticas efetivas.
Quero encerrar essa crônica deixando os meus agradecimento ao mestre Gilsinho , e ao mestre Antony, que atuam há mais de trinta anos doando muitas horas semanais e aos finais de semana para desenvolver e acompanhar crianças, jovens e adultos na arte e filosofia da capoeira na cidade de Registro, gratuitamente.
Compartilho que a capoeira tem acrescentado à minha formação: o retorno a vivência comunitária, o aprendizado da cultura afro-brasileira, que tem um ponto em comum com a psicanálise, pois não se faz apenas na teoria, afinal, é preciso vivenciar a análise, transmitir a psicanálise e produzir um saber que seja reconhecido entre os pares.
Na capoeira também é assim, temos a teoria, o conhecer pelo corpo, pelo som, pela narrativa, e o se lançar na transmissão e despertar de saberes.
As contribuições sociais advindas das práticas da capoeira no campo da saúde mental, da pedagogia e outros campos, merece uma coluna dedicada. Mas, considero oportuno lembrar que a capoeira é recomendada para todas as idades.
Ela favorece a troca intergeracional, pois se aprende com crianças, com jovens e com adultos, enfim com pessoas de todas as idades. Além de fazer bem para saúde, ajuda no desenvolvimento de inteligências múltiplas, tais como: a linguística (no aprendizado das letras, nas histórias transmitidas), a lógico-matemática (noção espacial, velocidade, capacidade de reação/decisão rápida),a musical ( discriminar sons, tons, etc), a espacial, a cinestésico-corporal (saber usar o corpo para resolver problemas), a intrapessoal (conviver, colaborar, ensinar, aprender) e interpessoal (saber seus limites, se conhecer), conforme De Souza (2019).
Escrito por
Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP.
E-mail:michelegouveia.psi@gmail.com
Site: https://michelegouveia27.wixsite.com/michelegouveia
REFERÊNCIAS
Associação Cultural Ilê Axé Dudu: https://www.instagram.com/associacao_ileaxe/
Sobre o pacto coletivo por cidades antirracistas: https://www.mpsp.mp.br/w/municipios-aderem-ao-pacto-coletivo-por-cidades-antirracistas
DE SOUZA, Adenildo Vieira. A CAPOEIRA E AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS: possiblidades de experiências para uma formação integral.: Possiblidades de experiências para uma formação integral. BIUS-Boletim Informativo Unimotrisaúde em Sociogerontologia, v. 11, n. 3, p. 1-16, 2019.
DOS PASSOS, Maria Clara Araújo; PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Do epistemicídio à insurgência: o currículo decolonial da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa (2018-2020). Cadernos de Gênero e Diversidade, v. 7, n. 1, p. 118-135, 2021.
NOGUERA, Renato. Os gregos não inventaram a filosofia. Dossiê Filosofia da ancestralidade. Revista CULT, Ano, v. 18, p. 40-44, 2016.
RODRIGUES, Nelson. (1993). Complexo de vira-latas. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo, Cia das Letras, 61-63.
SÁVIO, Nilton José Sales. " Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba", de Wallace Lopes Silva (Org.). Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10, p. 261-264, 2019.
SANTOS, Marcos Francisco dos et al. A psicologia social do complexo de vira-lata: Conciliando distintividade positiva e justificação do sistema. 2019. Disponível https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/16795/1/Arquivototal.pdf
Reconhecer a ancestralidade é um antídoto contra o complexo de vira-lata |
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